terça-feira, outubro 31, 2006

Um Novo Membro

O suave crepitar da lareira misturado com o doce aroma das ervas aromáticas tornavam o ar da salinha de estar simplesmente irresistível e acolhedor. Fecho os olhos e deixo-me enterrar profundamente na confortável poltrona de pele enquanto espero pacientemente pela anfitriã.
- Vejo que não fizeste cerimónia e já estás bem instalado. - diz ela entrando na salinha segurando um tabuleiro com duas xícaras de chá, um bule com água a ferver e uns bolinhos de manteiga.
- Sim, isto recorda-me os velhos tempos, parece que nada mudou. - digo sorrindo servindo-me de chá e bolinhos.
- Estás a iludir-te, muita coisa mudou, já não temos 15 anos, estamos mais maduros, mais experientes. - diz ela sentando-se à minha frente observando-me por entre a leve névoa que se elevava da sua xícara.
- Tens razão...
A conversa morre repentinamente dando origem a um silêncio desconfortável que nenhum dos dois ousa quebrar.
- Tive saudades tuas. - digo repentinamente. - Saudades do teu olhar, da tua voz, do teu perfume, da tua presença. Agora que olho para trás, aquela discussão parece-me tão estúpida.
- E foi, mas como se costuma dizer, a verdadeira amizade não morre tão facilmente e também eu tive saudades tuas. - diz ela com um sorriso bebendo um pouco mais do seu chá de baunilha. - Como está a tua mulher?
- Estamos separados, ai Diana, aconteceu tanta coisa na minha vida que não sei como é que continuo são.
- Conta-me, afinal de contas sempre fomos confidentes.
- Eu sei, mas eu nem sei por onde começar e nem te quero maçar com os meus problemas.
- Não digas parvoíces, tu não me vais maçar, bem pelo contrário, essa tua voz é um bálsamo para os meus ouvidos. - os seus olhos verdes brilham ao dizer estas palavras e eu coro ligeiramente.
- Com tais argumentos quem é que pode resistir, está bem, eu conto. - início então o meu relato desde a nossa separação até ao nosso reencontro. - E foi assim...
- Eu nem sei o que dizer, até me fazes sentir um bocadinho culpada por não estar presente quando mais precisaste.
- Não fiques assim, estávamos separados. - digo sorrindo. - E tu, o que tens feito?
A feiticeira suspira, bebe mais um golo do seu chá e olha para mim intensamente.
- Prefiro não dizer nada por agora, numa outra altura eu conto-te, se não te importas é claro.
- Não, eu não me importo, mas tu não te escapas, minha feiticeira, vais ter de me contar. - digo sorrindo deliciando-me com os seus bolinhos de manteiga.
- Suponho então que a tal ajuda que me pediste ainda há pouco refere-se a esse suposto feiticeiro, certo?
- Certo! Segundo sei, para encontrar um feiticeiro, só um outro feiticeiro, por isso vim ter contigo.
- Tens alguma coisa dele? Um pedaço de roupa, um cabelo ou simplesmente algo que ele tenha tocado?
- Sim, os restos do tal pacote que te falei, toma. - entrego-lhe o que resta do embrulho. - Só mais uma coisa, como é que consegues viver nesta cidade, é tão diferente das lendas, as pessoas são intolerantes e xenófobas e parece que vivem com medo de algo, especialmente à noite onde ninguém anda nas ruas.
- Eu depois conto-te, Cav, agora preciso de me concentrar para te dar as informações de que precisas. - a feiticeira levanta-se e dirige-se para a porta. - Antes de ires, tenho que te avisar de uma coisa, não confies em ninguém nesta cidade pois nada é o que parece.
- Por essa ordem de ideias nem em ti devia confiar, Diana. - digo piscando o olho e beijando-lhe o rosto. - Já sabes onde me encontrar, até logo!

- Bolas, já não era sem tempo, Cav, por onde é que tu andaste? - pergunta a demónio assim que abro a porta.
- Estive com a minha amiga como te tinha dito, estavas preocupada?
- Com a tua amiga? Este tempo todo? De certeza que estiveram a "matar" saudades, não foi? - continua ela.
- Não foi esse tipo de saudades, sua pervertida, mas sim, estivemos a pôr a conversa em dia.
- Pois... - diz ela desconfiada.
- Acaso estás com ciúmes?
- Ciúmes, eu? Claro que não, apenas estou curiosa. Quero saber se ela é bonita, interessante e acima de tudo se gosta de demónios.
- Não sei, vais ter de lhe perguntar isso.
- Oh, vá lá, diz-me quais são as suas fantasias, com o que é que se excita, que posições gosta e com que sexos é que gosta de ter prazer.
- Tu és incrível, estamos a tentar resolver o nosso problema e tu só pensas em levá-la para a cama! - exclamo atirando-me para cima do colchão.
- Hey, a vida não são só problemas, temos de descontrair de vez em quando e para mim não há nada como uma boa queca. - diz ela deitando-se ao meu lado beijando o meu pescoço.
- Tu não mudas, pois não? - digo sorrindo.
- Nunca, meu querido, nunca! - diz ela lambendo o meu queixo.
- Já agora, ela aceitou em ajudar-nos.
- Isso é bom, mas agora faz o favor de estar calado, está bem? - e sem mais palavras beija-me.

segunda-feira, outubro 30, 2006

Reencontro

A porta abre-se violentamente e uma demónio furiosa entra de rompante.
- Eu vou matá-lo! Eu vou esganá-lo! - grita ela atirando-se para cima da cama e agarrando-se à almofada.
- Tem calma, primeiro temos de o encontrar. - respondo fechando a porta atrás de mim.
- Como queres que tenha calma, ele usou-nos, Cav, usou-nos para fazer o seu trabalho sujo.
- Eu sei, mas não podes agir assim, tens de ter calma e pensar bem antes de tomar uma decisão precipitada. - sento-me ao lado dela massajando-lhe os ombros tensos. - É óbvio que a pessoa que nos abordou não é um indivíduo qualquer, é alguém ligado ao oculto e às artes arcanas, pois ninguém na estalagem se lembra de o ter visto e isso é muito estranho.
- Hmmm... - exclama ela deliciada. - Feiticeiro ou não quando eu o encontrar bem pode rezar a todos os seus Deuses e invocar todas as suas magias, isso não vai servir de nada, vai sentir na pele o preço de enganar um demónio.
- És sempre a mesma, Lara, tu não mudas. - respondo sorrindo e beijando-lhe a nuca.
A demónio vira-se para mim e beija-me nos lábios.
- Esta cidade é muito estranha, reparaste que mesmo depois do estrondo ninguém veio ver o que se passava? As ruas continuavam desertas, os estores fechados e nem sinal da guarda... Cav, estou a ter o mesmo pressentimento que tive em Unyard, algo não está bem e receio que o nosso homem mistério é apenas a ponta do icebergue.
- Eu penso o mesmo, Lara, eu penso o mesmo... - digo levantando-me e dirigindo-me para a porta.
- Onde vais? - Pergunta Lara levantando-se também.
- Ter com uma amiga.
- Uma amiga? Mas tu conheces alguém nesta cidade?
- Sim...
A demónio olha para mim desconfiada.
- Então andámos este tempo todo à procura de um quarto para nada, podíamos ter ido para casa dessa tua "amiga".
- A verdade é que eu não estava à espera de a voltar a ver, estamos de relações cortadas por uma idiotice, mas parece que vou ter de engolir o meu orgulho e dar o braço a torcer.
- Eu vou contigo. - diz a demónio colocando o manto.
- Não! Eu prefiro tratar disto sozinho. Até já.

O meu coração bate de ansiedade quando encontro finalmente a casa dela, as memórias há muito esquecidas das nossas aventuras percorrem uma vez mais a minha mente, entre elas está aquela discussão estúpida que nos separou durante todos este anos. O Destino tem destas coisas, afasta-nos de certos caminhos para depois nos lançar de volta para eles.
Ouço passos no interior caminhando na minha direcção e a porta abre-se lentamente momentos depois. Os nossos olhares cruzam-se pela primeira vez desde a nossa separação e o meu coração explode de emoção.
- Cav!? - Exclama ela surpreendida.
- Olá Diana. - Respondo meio embaraçado.
- Não estava à espera de te ver. - diz ela nervosamente ajeitando o cabelo. - O que fazes por aqui?
- Preciso de ajuda, será que podes ajudar um velho amigo?
A feiticeira sorri e abre a porta de par em par.
- É claro que te ajudo, entra. Já agora, queres um chá?

segunda-feira, outubro 23, 2006

O Pacote (2ª Parte)

Os candeeiros a óleo iluminam as ruas e vielas sombrias de Briseida, por onde quer que olhemos não encontramos vivalma, como se o turbilhão de pessoas que se movimentam pelas ruas durante o dia tivesse simplesmente desaparecido sem deixar rasto.
- Que esquisito, seria de esperar ver alguém nas ruas, assim como vemos em Roma e noutras grandes metrópoles, afinal de contas, ainda não é assim tão tarde e há sempre quem goste do ar da noite... - Comento olhando em volta.
- Sei lá, estes tipos são umas aberrações autênticas, se calhar têm medo do papão. - responde Lara sorrindo. - Ao menos lá arranjámos um trabalhinho, 30 moedas só para entregar este pacote, uff, o tipo devia estar desesperado.
- Pois devia, é muito dinheiro para uma tarefa assim tão simples. O que achas que está aí dentro?
- Não sei, mas aposto que deve ser algum presente para a amante. Machos, são sempre os mesmos, a esta hora deve estar com a sua mulher a dar uma festa importante, enquanto a sua rameira cuida dos bastardos.
- Não generalizes, não somos todos assim.
- Não? Meu querido, lá por tu não seres assim não quer dizer que os outros não sejam, vocês só pensam com o que têm entre as pernas e quem disser o contrário é um hipócrita e um mentiroso.
- Olha quem fala, tu és fêmea e ages exactamente da mesma maneira.
- Mas eu sou diferente! - diz a demónio arrogantemente.
- Claro, és diferente... Não existe um ditado que diz, "pela boca morre o peixe"?
- Cav, tu não me queiras comparar a seres inferiores, eu sou um demónio, tenho um apetite voraz e ninguém tem nada a ver com aquilo que eu faço ou deixo de fazer. Aliás, quando eu gosto de alguém eu sou... como é que vocês dizem, fiel?
Desmancho-me a rir ao ouvir a demónio a dizer aquilo.
- Tu, fiel? Oh Lara, só tu para me fazeres rir. Quem não te conheça que te compre, és demais!
- É a verdade, o problema é que eu ainda não encontrei alguém que goste. - responde ela com um sorriso enigmático nos lábios.
- Como assim que gostes, vocês demónios não amam, pelo menos é isso que me estás sempre a dizer.
- Mas quem é que falou de amor? Refiro-me a outro tipo de gosto.
- Não existe outro tipo de gosto, a não ser é claro o desejo sexual.
- Pois...
- Ui, essa doeu, isso quer dizer então que não estás muito satisfeita comigo.
- Eu não disse isso...
- Mas tu não me és "fiel", logo deduzo que não te satisfaça.
- De certa forma até sou, mas à minha maneira.
- À tua maneira, claro... - respondo sorrindo.
- E com esta conversa da treta lá chegámos nós ao nosso destino.

A porta abre-se e um homem rude e de mau aspecto aparece diante de nós.
- Trouxeram-no? - pergunta ele com maus modos.
- Sim, aqui está.
O pacote é-nos arrancado das mãos e a porta fecha-se num estrondo.
- Uma vez mais fomos alvo da "simpatia" das pessoas desta cidade. - diz Lara sarcasticamente.
- Sim, mas como vês o pacote não era para amante alguma, era para aquele tipo.
- Se calhar era "o" amante.
Começamo-nos a rir, mas de repente os nossos risos são abafados por um enorme estrondo que vem de dentro da casa onde acabámos de entregar o misterioso pacote.
Corremos o mais depressa que podemos de volta ao local, arrombamos a porta e deparamo-nos com um espectáculo horrível, todo o interior estava carbonizado como se tivesse deflagrado um grande incêndio, no chão jaz um corpo carbonizado segurando ainda o pequeno pacote que lhe havíamos entregue minutos antes e nas paredes, marcado a letras vivas cor de sangue encontra-se a seguinte mensagem:

Este é o preço a pagar a quem ousa desafiar-me!

sábado, outubro 21, 2006

O Pacote (1ª Parte)

As horas passam e a nossa busca por uma estalagem que aceite demónios parece estar condenada ao fracasso, é incrível, mas numa cidade onde segundo a lenda todas as raças deveriam ser bem vindas só encontramos é racismo e uma profunda intolerância. Em quase todas as estalagens, bares, bordeis e alguns templos, encontramos afixados nas janelas ou nas portas avisos de interdição para uma determinada raça, infelizmente todos estes avisos, embora sejam diferentes em alguns aspectos, parecem concordar num ponto: "não atendemos demónios!".
- Estou a começar a ficar farta disto! - grita Lara batendo com a porta da estalagem Crescente Vermelho após ter quase esganado o dono depois de a sua entrada ter sido recusada.
- Estás tu e estou eu, mas que cidade tão intolerante.
- Percorremos todas as estalagens e hotéis, não há nenhum que me aceite! Como se atrevem eles a negar a entrada a demónios, afinal de contas, nem todas estas raças juntas chegam aos meus calcanhares.
- Eles lá têm as suas razões e de certa forma até os compreendo, os demónios no passado causaram muita destruição nesta zona e nem todos eles são de fiar.
- Pelos vistos não foi suficiente, devíamos ter arrasado esta cidade!
- Bom, vamos continuar à procura, mas o melhor é usares este manto e tapares as tuas feições.
- Estás a propor que eu me esconda? Que me cubra como uma fugitiva só para arranjar um quarto? Insultas-me, Cav!
- Olha, Lara, põe de parte esse teu orgulho estúpido que já irrita e faz o que te peço, assim não dás muito nas vistas e talvez consigamos o que queremos. Afinal de contas, tu que és uma Assassina, sabes bem que em certas alturas convém estar disfarçado.
A demónio resmunga qualquer coisa, mas lá acaba por aceitar o manto.
- Desculpem. - diz uma figura que aparece subitamente das sombras. - Eu sem querer ouvi a vossa conversa e creio que vos posso ajudar. Conheço um local onde poderão ficar, vai custar-vos um pouco mais caro que o normal e os quartos não serão grande coisa, mas terão comida e calor.
- E porque razão nos queres ajudar quando todos os outros nos fecham as portas? - pergunto desconfiado.
- Porque Briseida foi erigida para ser um porto de abrigo para todas as raças, e como podem ver tornou-se tudo menos isso.
Lara e eu olhamos um para o outro para decidir o que fazer.
- Aceitamos! - dizemos em conjunto.

O homem não se tinha enganado, o local para onde nos levou deixa muito a desejar, mas ao menos temos um quarto e comida à nossa disposição. Após um bom banho e um jantar delicioso decidimos descer até à sala comum, esta está impregnada de odores vários e de um ambiente simplesmente fantástico. Todos parecem divertir-se ao som de um bardo que conta uma história cómica, Lara e eu não nos fazemos esquisitos e sentamo-nos numa das mesas e juntamo-nos à diversão.
- Desculpem incomodar-vos. - diz uma voz momentos depois. - Mas vocês parecem ser aventureiros com alguma experiência, será que estariam interessados num trabalhinho?
Lara e eu viramo-nos para confrontar a voz, é um homem de meia idade, cabelo azul e olhos roxos, pelas suas roupas parece viver bem e pelo sinete que trás num dos dedos parece ser alguém de poder.
- Depende do teor do trabalho. - responde Lara bebendo um trago de cerveja caseira.
- É simples, preciso apenas que se dirijam à Rua das Amoras e entreguem este pequeno pacote no nº35.
- Se é assim tão simples porque é que não o entrega pessoalmente?
- Sou um homem de posses e detenho algum poder nesta cidade, como vocês já devem ter reparado, e há coisas que uma pessoa como eu deve evitar fazer pessoalmente para não criar conversas e boatos indesejáveis. - o homem tira de uma das mangas uma pequena bolsa. - Aqui estão 30 moedas de ouro, penso que é o suficiente para uma tarefa tão simples.
- Está bem! - diz Lara pegando na bolsinha e sentindo-lhe o peso. - E para quando é a entrega?
- Para esta noite. - diz o homem aliviado.

quinta-feira, outubro 19, 2006

Briseida

Após longos dias de viagem chegamos finalmente à bela cidade de Briseida. A cidade é basicamente uma ilha enorme, muito bem fortificada e criada de modo a garantir aos seus habitantes uma defesa inexpugnável. Existem apenas dois pontos de entrada e/ou saída da cidade, o primeiro é através da entrada a Norte, cujos viandantes terão que atravessar a Ponte de Cristal, a única entrada via terrestre, o segundo é através do Porto das Nereidas no Sul, onde navios de todos os cantos de Gaia atracam diariamente trazendo consigo viajantes e mercadorias mirabolantes.
Por ironia, ou talvez não, Briseida pode ser considerada como uma cidade-estado, como aquelas da Grécia Antiga, possui um exército muito bem armado e disciplinado e uma marinha forte que controla os mares em redor. De acordo com a lenda, todas as criaturas são bem vindas, tanto as terrestres como as aquáticas ou qualquer outro tipo, pois sobre toda a cidade paira uma magia muito forte que permite a sobrevivência de todo o tipo de espécies.
Mesmo no centro da cidade encontra-se uma estátua de pedra muito bem conservada, a estátua representa Aquileia emergindo do mar com o seu amor, já sem vida, nos braços. A imagem daquele momento tão dramático está tão bem reproduzida que por vezes muitos observadores afirmam a pés juntos que lágrimas de dor rolam do rosto de pedra daquela jovem mulher. Verdade ou não, isso não se sabe, talvez a fé em demasia faça ver coisas que não existam, mas muitos acreditam que quando Aquileia chora é sinal de grandes mudanças na cidade...

Após atravessar a Ponte de Cristal, Lara e eu dirigimo-nos para a estalagem mais próxima, estamos fartos de dormir sob as estrelas e depois de Unyard decidimos nunca mais arriscar a parar em aldeias isoladas. Entramos numa que parece ser boa e acessível, O Tritão de Ouro, o seu aspecto exterior chama a atenção e o bafo quente que vem de dentro recheado de um aroma divinal, convencem-nos de imediato. Assim que entramos a música e as conversas animadas cessam por completo e todos os olhares convergem para nós.
- Cav, trata do pagamento que eu vou já para o quarto, preciso de um banho, estou imunda. - diz Lara indiferente aos espectadores e tomando a direcção das escadas.
- Lamento, mas estamos cheios! - diz o estalajadeiro imediatamente, bloqueando o acesso aos quartos.
- Está a brincar, a estalagem é grande e pelo que me parece só tem pelo menos meia dúzia de hóspedes. - digo.
- Pois... Mas está a ver, é que...
- É que nós não queremos essa laia na nossa cidade! - diz um dos hóspedes levantando-se e cuspindo para o chão enquanto fita desprezivelmente a demónio.
- Laia!? LAIA!? Ouve lá, ó amostra de criatura, quem és tu para me falares dessa maneira!? - rosna Lara furiosa.
- Eu sou um cidadão de Briseida e não quero ter de aguentar o cheiro de demónios nojentos nos locais que frequento.
Lara fica vermelha de cólera, seus olhos dourados parecem libertar chispas de raiva.
- Como te atreves a falar-me dessa maneira, é melhor que retires o que acabaste de dizer ou daqui a poucos minutos irás é aguentar a longa fila de espera no Mundo dos Mortos.
Dito isto mais quatro individuos se levantam preparados para auxiliar o seu amigo em caso de luta. O estalajadeiro desaparece na direcção das cozinhas e pouco tempo depois reaparece com um facalhão na mão.
- Se eu fosse a ti pensava duas vezes antes de avançar mais um passo. - digo-lhe desembainhando a espada e colocando a lâmina bem perto do seu pescoço gordo.
O homem recua e foge de volta para as cozinhas.
- Metes-me nojo, como podes defender uma coisa destas. - diz o hóspede fitando-me com desdém.
- Para já, a coisa tem nome, chama-se Lara, e depois, confio mais nela do que em qualquer humano deste Mundo.
- Mas...
- Caluda! O teu problema é comigo, por isso diriges-te só a mim, entendido? - diz a demónio sacando um pequeno punhal da bota.
O hóspede sorri desdenhosamente confiante nos seus quatro companheiros, mas antes de ter tempo de dizer alguma coisa já o punhal de Lara voa pelos ares indo cravar-se a poucos milimetros dos seus genitais. O homem fica pálido como cal e o som de gases a serem expelidos faz-se ouvir ruidosamente no salão.
- Como eu pensava, não passas de um cobardolas que nem sequer sabe controlar os seus intestinos. - diz Lara sorrindo desdenhosamente. - Dá-te por muito feliz por eu hoje estar demasiado cansada, ou obrigava-te a comer aquilo que acabaste de expelir. Ah, podes ficar com o punhal, é um presente meu. - e rindo a bandeiras despregadas vira-lhe as costas e sai calmamente da estalagem.
- Só mais uma coisa - digo tapando o nariz. - queixavas-te do cheiro dela, mas olha que o teu é bem pior...

- Estás bem? - pergunto assim que abandono a estalagem.
- Estou exausta e sem paciência alguma para estas criaturinhas que pensam que são gente só porque se governam a si mesmos. Preciso de um quarto para dormir e para tomar um bom banho! - suspira Lara.
- O que não falta por aí são estalagens, tenho a certeza que encontraremos uma que aceite demónios.
- Espero bem, senão Briseida vai tremer ante a minha fúria. - diz ela sorrindo e piscando-me o olho.

domingo, outubro 15, 2006

Aquileia e Éwon (3ª Parte)

"A feiticeira da ilha de Lum era uma bela mulher, aparentava ter apenas 26/27 anos, a sua pele era macia e estava impregnada num adocicado aroma que deixava qualquer homem, ou mulher, loucos de paixão e desejo, os seus cabelos negros com vários rasgos de azul caíam pelas suas costas dando-lhe um aspecto místico, os seus olhos verdes como uma esmeralda eram simplesmente irresistíveis mas escondiam na sua íris uma alma perversa, fria, calculista e desprovida de qualquer sentimento. Era uma mulher poderosa que passava a maior parte dos seus dias criando novos feitiços e poções, lançando encantamentos e maldições e traçando e elaborando planos para aumentar a sua esfera de influência.
Ninguém sabe quais eram os seus planos para Éwon, mas todos puderam constatar a sua raiva e a sua fúria no dia a seguir à sua fuga com Aquileia. Um grito enorme varreu a aldeia e pouco depois seguiu-se uma gigantesca onda que a engoliu, destruindo-a por completo e matando todos os seus habitantes. A partir daquele momento a feiticeira jurou vingança e transformou Aquileia em sua inimiga mortal.

Os anos passaram e tanto Éwon como Aquileia viviam imersos numa felicidade sem limites desconhecendo o destino da aldeia e da inimiga que haviam adquirido. Éwon mudara um pouco, tornara-se mais maduro e deixara crescer a barba, no seu ombro direito encontrava-se agora uma tatuagem de uma mulher cavalgando um golfinho e no seu peito uma profunda cicatriz marcava-lhe a pele dourada. Aquileia, essa, em nada mudara, continuava bela como sempre, talvez até ainda mais encantadora, apenas tinha olhos para o seu amado e em especial para aquela tatuagem e cicatriz.
- O vento do Norte traz-me notícias de mudanças, meu amor. - diz Aquileia subitamente.
- Como assim? - pergunta Éwon abraçando com mais força a sua mulher.
- Não sei, é um pressentimento que tenho, algo vai acontecer...
- Algo de bom, espero eu.
- Não, sinto um gelo nos meus ossos, não é bom o que está para vir.
Éwon olha preocupado para Aquileia e beija a sua testa.
- Seja o que for enfrentá-lo-emos juntos, como sempre o fizemos.
- Eu sei, meu amor, eu sei... - diz ela sorrindo e enroscando-se ainda mais nos braços fortes dos seu amado.

O pressentimento de Aquileia não podia estar mais correcto, poucos dias após aquela conversa uma temível tempestade abate-se sobre eles. Raios e trovões tomam conta dos céus negros, ventos fortíssimos arrancam os mastros e rasgam as velas e ondas enormes engolem o navio levando tudo à sua passagem. Aquileia e Éwon tentam combater a fúria da tempestade, mas os seus esforços são em vão, por mais que tentem o navio parece estar a ser conduzido pelos caprichos do mar. Subitamente dois raios atingem o barco, um cai sobre um dos mastros partidos e o outro sobre uma das velas rasgadas, originando um terrível incêndio. Éwon olha para Aquileia sem saber o que fazer, esta apenas sorri e dá a mão ao seu amado dizendo-lhe, «Segue-me», ele não hesita e sem pensar duas vezes e sem largar a mão dela atiram-se para as águas furiosas do oceano.
Debaixo de água tudo é calmo, o barulho da tempestade cessa e as ondas enormes deixam de espalhar o seu terror, ao seu lado sempre sorridente está Aquileia que nem por um segundo lhe larga a mão, de tempos a tempos ela aproxima-se dele e beija-o dando-lhe o ar que ele tanto necessita para sobreviver neste mundo estranho. Por momentos tudo parece bem, tudo parece tranquilo e seguro, mas de repente algo acontece, uma força inexplicável prende-lhe o calcanhar e começa a puxá-lo para baixo, nervoso Éwon tenta escapar, mas a força é demasiado poderosa. Aquileia tenta ajudá-lo, mas os seus esforços são em vão, o que prende o seu amado não pode ser destruído, é uma magia demasiado poderosa para ela, tão poderosa que começa a puxá-la para longe, Aquileia tenta resistir, tenta manter-se presa à mão do seu amor com todas as forças do seu corpo, mas mesmo sendo filha de Aquiles, mesmo sendo bisneta de um titã, as forças falham-lhe e é levada para longe. Apenas se pode imaginar a dor que ambos sentiram naquele momento decisivo em que as suas peles deixaram de se tocar e ambos se separaram para sempre."

Calo-me subitamente lembrando-me do momento em que Eleanora morria nos meus braços e eu nada podia fazer.

"Assim que se sentiu livre daquela força misteriosa, Aquileia nadou a toda a velocidade para junto do seu amor, mas já era tarde, Éwon estava morto. Desesperada a jovem pegou no corpo do seu amado e transportou-o de volta à superfície, para sua surpresa descobriu que se encontrava precisamento no mesmo local onde anos antes o tinha visto pela primeira vez. Aquileia tentou de tudo para resgatar o seu amor das garras da morte, mas de nada lhe valeu, Éwon partira para sempre e não havia nada a fazer. As lágrimas jorravam dos seus olhos como um rio imparável, as suas mãos trémulas acariciavam o corpo imóvel do seu amado e os seus lábios beijavam a sua pele salgada e a sua boca que outrora os recebeu com tanto amor e carinho.
- Éwon, Éwon, que irei eu agora fazer sem ti? Como poderei continuar a viver sem o teu sorriso, sem o teu olhar confiante e sem a tua voz maravilhosa, como irei eu aguentar sem tornar a sentir o doce aroma da tua pele e o teu abraço forte nas noites sem luar? - Aquileia pousa a sua cabeça no peito dourado do seu amado. - Jurámos um ao outro que enfrentaríamos tudo juntos, não foi? Então o que faço eu aqui? Como posso eu deixar-te caminhar sozinho no mundo dos mortos? - sem pensar duas vezes, a jovem desembainha o pequeno punhal q se encontra no cinto do seu amado e crava-o directamente no coração.
No alto da sua torre a feiticeira apenas sorri ante o final destes dois desafortunados amantes.

Os Deuses assistiram a tudo, Vénus abençoou aquela praia e Nereu, bisavô de Aquileia ergueu em sua honra uma cidade encantada, uma cidade onde criaturas marinhas e criaturas terrestres pudessem conviver juntas. Essa cidade recebeu o nome de Briseida, pois era este o nome da filha que iria nascer do amor entre Aquileia e Éwon."

- E o que aconteceu à feiticeira? - pergunta Lara.
- Ninguém sabe, alguns dizem que os Deuses a castigaram, outros dizem que ainda se encontra viva perpetuando os seus planos maquiavélicos.
- Temos de descobrir, gostava de a conhecer.
- Ai sim? E porquê, posso saber?
- Gosto de desafios, meu querido, e ela parece-me ser um belo desafio. - Lara sorri e fita-me com os seus olhos dourados. - Farias o mesmo por mim?
- Fazer o quê? - pergunto-lhe confuso.
- Se eu morresse irias aos Infernos resgatar-me como fizeste com a Ela?
- Isso não vai acontecer, minha demónio, eu nunca te deixaria morrer. - digo sorrindo.
- Não me respondeste, Cav.
- Iria sim, Lara, sem hesitar.
A demónio sorri maliciosamente, mas sinto um estranho brilho no seu olhar que me deixa a pensar...

sábado, outubro 14, 2006

Aquileia e Éwon (2ª Parte)

"Tanto Aquileia como Éwon estavam felizes, ambos haviam encontrado aquilo que muito poucos encontram, um amor verdadeiro, cada hora, cada minuto, cada segundo que passavam sem estar perto um do outro era uma tortura sem fim, uma dor que não tinha explicação. Éwon descuidava-se nos seus deveres, muitas vezes encontravam-no a olhar para o vazio ou sorrindo para as ondas, ninguém percebia o porquê deste seu comportamento e a pouco e pouco começavam a desconfiar se o rapaz não fora alvo de um feitiço ou se simplesmente enlouquecera. Assim, os seus pais observando o estranho comportamento do seu filho e vendo-o desaparecer durante largas horas todos os dias decidiram segui-lo, o que viram deixou-os surpreendidos. Ali sobre o extenso areal dourado encontrava-se Éwon, mas este não estava sozinho, ao seu lado estava Aquileia, nua como sempre e usando na cabeça uma coroa de flores feita pelo seu amado. Ambos trocavam beijos e palavras de amor eterno, ambos sorriam um para o outro e por vezes assim ficavam, sem dizer uma só palavra, comunicando apenas com o olhar e com o desejo das suas mãos. No final, e após um longo e demorado beijo, ambos se separam, Aquileia regressa ao mar e Éwon prepara-se uma vez mais para ir para casa, nos seus olhos estava estampada a angústia e o sofrimento da separação, mal sabia ele aquilo que o esperava.

- Não vais voltar àquele sítio, meu rapaz! - Gritava o pai furioso.
- Mas porquê, o que fiz eu de mal? - Éwon tentava a todo o custo perceber o que se passava, sentia-se como se lhe tivessem cravado um punhal no peito e só de pensar que podia nunca mais ver Aquileia empalidecia mortalmente.
- Ainda perguntas? Foste enfeitiçado por aquela coisa, por aquela criatura em forma de mulher que te vai levar para a perdição.
- Como podem dizer uma coisa dessas, a Aquileia é uma rapariga tão meiga, tão doce, ela nunca me faria mal, estamos apaixonados.
- Não voltas para lá e acabou-se, meu menino! Amanhã vamos levar-te à feiticeira que vive na ilha de Lum e ela levantará esse feitiço de cima de ti.
- Mas... - Éwon cala-se, sabe que os seus pais já estão decididos e não há nada a fazer, apenas tem duas hipóteses, ou foge, ou nunca mais volta a ver Aquileia.

O coração fala sempre mais alto e Éwon nunca conseguiria viver sem ter Aquileia do seu lado, por isso pela calada da noite faz a sua trouxa e foge para a enseada. Ali encontra a sua amada sentada numa pedra observando a Lua e esperando ansiosamente pelo nascer do dia para uma vez mais encontrar o seu amor.
- Aquileia! - grita Éwon ao vê-la. - Meu amor, estás aqui!
A rapariga vira-se surpreendida e um sorriso com um misto de preocupação e de alegria sem fim desenha-se nos seus lábios.
- O que fazes aqui a estas horas, está tudo bem? - Pergunta ela atirando-se nos seus braços.
- Não, não está, meu amor, os meus pais seguiram-me ontem e pensam que tu me enfeitiçaste e me queres fazer mal, querem separar-nos para sempre.
- Eu nunca te faria mal, eu amo-te mais que a minha própria vida. Queres que fale com eles?
- Não vai valer a pena, eles são casmurros, se te apanham ainda são capazes de te matar. Eu não quero que isso aconteça, quero-te para sempre, meu amor, para sempre. - Ele abraça-a com força ao dizer estas palavras. - Queres fugir comigo?
- Quero sim! - diz ela radiante. - Mas não irás sentir falta da tua cidade, dos teus pais e amigos?
- Aquileia, eu prefiro a morte do que estar separado um segundo sequer de ti.

A jovem convoca dois cavalos marinhos e juntos partem para bem longe iniciando assim as suas aventuras. Percorrem toda a Gaia conhecendo gente nova, fazendo inúmeras descobertas, enfrentando criaturas desconhecidas e dando origem a uma lenda. Infelizmente ambos desconheciam o que os esperava, a feiticeira da ilha de Lum, a tal a que os pais de Éwon queriam levar, tinha planeado um final bem diferente para este romance, pois afinal de contas Éwon tinha-lhe sido prometido em casamento mesmo antes de nascer como paga por ter curado a infertilidade dos seus pais..."

- E depois? - Pergunta Lara fitando-me com os seus olhos dourados completamente perdida na história.
- Amanhã, amanhã conto-te o final. - digo sorrindo.
- Mas isso foi o que disseste ontem! Vá, conta lá o final, adoro estas tuas histórias se bem que tenham pouco sangue e sexo, mas mesmo assim estão bem contadas...
- E depois eu é que sou pervertido, não é?
A demónio sorri e atira-se para cima de mim.
- Claro que és, queres ver a prova? - diz sorrindo e começando a desapertar-me o cinto.

terça-feira, outubro 10, 2006

Aquileia e Éwon (1ª Parte)

"Reza a lenda que do amor entre Aquiles e Briseida nasceu uma bela rapariga de nome Aquileia, a sua beleza e o seu espírito guerreiro tornaram-se numa lenda e todos na Grécia Antiga desejavam desposar esta jovem provocante e irreverente. Infelizmente a sua beleza que cativava tanto Homens como Deuses criou-lhe inimigas inesperadas e poderosas, Afrodite que se sentia repudiada pelo seu amante, Ares, e até pelo seu marido, Hefesto, resolveu lançar sobre a pobre jovem toda a sua fúria e ciúme. Assim, num dia de calor enquanto Aquileia nadava nas águas calmas de um rio perto da sua casa, Afrodite prepara-se para lançar sobre ela uma terrível maldição, mas Hera ao aperceber-se do triste destino que esperava a neta da sua querida amiga Tétis, a nereida, decide intervir e envia-a para Gaia.
Talvez Aquileia tenha sido a primeira humana a pisar o solo de Gaia, mas devido à sua ascendência divina, à sua beleza sem igual e aos seus poderes marinhos, a maioria das pessoas considerou-a uma semi-deusa ou até mesmo uma nova Deusa. Ninguém lhe ficava indiferente, era do estilo de pessoa que ou se adora sem limites ou se detesta com todas as forças do nosso ser.

Uns anos após ter chegado a Gaia, Aquileia abandonou quase por completo a terra firme, passava a maior parte dos dias dentro de água nadando livremente e conversando alegremente com as criaturas marinhas. Um dia estava ela sentada num extenso areal completamente nua e penteando os seus longos cabelos castanhos e enfeitando-os com fios de pérolas quando subitamente aparece num carreiro há muito abandonado um jovem rapaz. Aquileia envergonhada atira-se imediatamente para a água, mas talvez por mera curiosidade não conseguiu partir e ficou ali escondida, atrás de uma rocha observando em segredo o jovem.
O rapaz de nome Éwon era um simples marinheiro que desde criança fugia para aquela enseada secreta com o intuito de passar algum tempo a sós e fazer aquilo que mais gostava, cantar. Mas Aquileia ainda não se tinha apercebido da voz do rapaz, os seus olhos estavam presos no seu rosto doce e firme e no seu tronco nú bem esculpido. Pela primeira vez em toda a sua vida a jovem sentiu-se erubescer, o seu coração disparou e da sua boca saiu um tímido "uau".
Éwon era de facto um rapaz muito belo, a sua farta cabeleira loira cobria os seus olhos doces e perspicazes de uma forma quase indomável, a sua pele dourada pelo Sol brilhava de saúde e sensualidade e os seus músculos e peitorais firmes e bem delineados davam-lhe um ar quase divino. Sem saber que estava a ser observado, Éwon sentou-se na areia e começa a cantar, a sua voz melodiosa funciona como ingrediente final na paixão que começava a nascer dentro do peito de Aquileia, durante horas ela ali fica, observando-o e ouvindo as suas músicas, rindo e chorando conforme o teor da letra. O dia começa a entardecer e sem que ela se dê conta já as estrelas brilham no céu e a Lua dá o ar da sua graça, finalmente as melodias acabam e Éwon regressa acasa sem nunca ter percebido que estava a ser vigiado.
Nos dias seguintes, Aquileia regressa à enseada procurando e esperando pacientemente por aquele jovem, mas ele não aparece, durante 6 dias e 6 noites ela o espera, mas nem sinal dele, até que por fim, no sétimo dia ele aparece uma vez mais vindo do carreiro abandonado, senta-se precisamente no mesmo local e volta a cantar.

- Que belo rapaz! - diz ela suspirando envolvida naquela música tão acolhedora e quente sem se aperceber que falara em alta voz.
Éwon ouve-a e pára imediatamente de cantar, levanta-se num salto e olha em todas as direcções perguntando naquela voz doce e sensual:
- Quem está aí?
Aquileia acorda abruptamente daquele sonho mágico e apercebe-se do que fez, o seu coração dispara e pela primeira vez na sua vida não sabe o que fazer ou o que dizer.
- Quem está aí? - pergunta de novo Éwon. - Eu ouvi-te, é melhor mostrares-te!
Coberta de vergonha Aquileia emerge das águas nua e extremamente embaraçada.
- Fui eu quem falei, por favor perdoa-me, mas a tua voz é tão bela que eu não pude deixar de me levar por ela.
Éwon esperava tudo menos aquela rapariga tão bela que acabava de sair das águas, o seu coração dispara ao ver o seu olhar e as suas formas sensuais e naquele momento recebe a fatal seta do Cupido no seu coração. Pode parecer incrível, mas ambos se apaixonaram um pelo outro no preciso momento em que se viram e embora nunca se tenham visto parecia que se conheciam à séculos. Éwon balbucia algo sem sentido, sorrindo e coçando o seu cabelo, Aquileia fixa o seu olhar num pedaço de madeira que jaz na areia e mordisca o seu lábio inferior. Sem que ambos se apercebam, depressa se encontram bem pertos um do outro, tão perto que até sentem a respiração pesada um do outro, mas por vergonha ou medo as coisas terminam por aqui e ambos correm como dois miúdos de volta para o seu mundo..."

Deito-me sobre o meu saco cama e fito as estrelas.
- Ai, Cav, não páres agora, continua. - diz Lara beliscando-me o ombro.

"Embora tenham fugido a este primeiro encontro, a verdade é que a curiosidade e a atracção tomou conta deles e no dia seguinte lá estavam os dois de novo naquele areal maravilhoso. Desta vez nenhum deles fugiu, embora nervosos, ambos fecharam os olhos e trocaram o seu primeiro beijo, um beijo cheio de ternura e de descoberta, aquele que fica na nossa memória até ao resto dos nossos dias por nos sentirmos tão parvos na altura em que o demos. Esse seria o primeiro de muitos e o início de uma grande e bela história de amor."

- Amanhã conto-te o final da história da fundação de Briseida, mas agora estou muito cansado e quero é dormir. - digo beijando os lábios da demónio.
- Humanos, sempre cansados... Mas conta-me, essa enseada ainda existe?
- Sim, tomou o nome de Enseada dos Amantes.

segunda-feira, outubro 09, 2006

Rescaldo

Deixo-me ficar sentado numa pedra observando a demónio que mergulha despreocupadamente nas águas convidativas do lago. Contemplo os seus movimentos, as suas formas extremamente sedutoras e o seu sorriso de satisfação por saber que está a ser vista. Sinto uma vontade enorme de me juntar a ela, de beijar os seus lábios doces e de a possuir ali mesmo naquele lago, mas as memórias do que aconteceu ainda há pouco no vale voltam a assolar-me e esse desejo desaparece.
- Porque não te juntaste a mim, a água estava óptima. - diz Lara sorrindo minutos depois ao sair do lago.
- Precisamos de falar. - respondo.
- Diz. - a demónio senta-se nua ao meu lado e coloca o seu braço em volta do meu pescoço enquanto me mordisca a orelha.
- Como foste capaz de fazer aquilo? - pergunto indiferente aos seus avanços e carícias.
A demónio pára o que está a fazer e fita-me intensamente com os seus olhos dourados.
- Ela ousou tocar-me, ousou tentar transformar-me numa daquelas aberrações, ela mereceu totalmente aquilo que lhe fiz, mereceu cada grito que expeliu daquele corpo moribundo e decadente. No meu ponto de vista até acho que fui demasiado branda.
- Demasiado branda!? Demasiado branda!? Lara, os seus gritos ainda ecoam nos meus ouvidos, fiquei enojado com aquela cena. - respondo exaltado levantando-me num pulo. - Eu não quero que voltes a fazer uma coisa daquelas, ouviste, não quero!
- Não queres!? Não queres!? - grita a demónio irritada levantando-se também. - Mas quem és tu, humano, para me dizeres o que devo ou não fazer? Eu faço o que quero e o que me apetece e não serás tu que me vai dizer como agir.
- Vou sim, Lara, vou sim!
- Cav, eu já não sou a tua serva nem tu o meu senhor, sou livre, por isso vai dar ordens a outra!
- Lara, se queres torturar e fazer o que te apetece, então fá-lo, mas sozinha! Recuso-me a ser parceiro de alguém tão vil e baixo.
- Baixo!? Como te atreves, reles humano, eu sou uma demónio de pu...
- Eu sei bem o que tu és, Lara, já estás farta de mo dizer. - grito extremamente irritado em plenos pulmões. - Mas eu digo-te uma coisa, pouco me importa o teu sangue ou a tua classe, pouco me importam os teus feitos extraordinários e as tuas habilidades sem par, neste momento olho para ti e sinto nojo, percebes, nojo!
A demónio fita-me surpreendida sem saber o que dizer.
- Eu...
- Não digas nada! Queres fazer o que te apetece, não é? Pois então as nossas aventuras em conjunto terminam aqui, não quero pactuar contigo nestas coisas. - grito tirando a sua espada da bainha e atirando-a para o chão. - Agradeço esta tua oferta, mas já não vou precisar mais dela.
- Estás a ser precipitado e a criar uma tempestade num copo de água, pensa melhor, não é caso para nos separarmos.
- Lara, durante toda a minha vida combati criaturas como aquela em que te tornaste hoje de manhã e não será agora que irei ser companheiro de uma delas. - pego nas minhas coisas e coloco-as no dorso do meu cavalo.
- Espera, em nome da nossa velha amizade.
- É em nome da nossa velha amizade que eu estou a agir desta forma, senão as coisas seriam bem diferentes. - dito isto monto e preparo-me para partir.
- Não vás, eu mudo se for preciso, mas não vás...
Aquelas palavras caiem sobre mim como um balde de água gelada acalmando a minha ira e deixando-me confuso.
- Como?
A demónio não responde limitando-se a olhar para mim.
- Não te estou a perceber, explica-te!
- Eu não quero que vás, não quero que me vejas como um dos montros que combateste no passado, estou disposta a refrear os meus instintos mais animalescos, se for preciso.
- Continuo sem perceber, Lara, estás disposta a mudar por um reles humano?
- Estou disposta a mudar por ti e não por um reles humano.
Desmonto e sorrio para ela.
- Lara, Lara, estarás mesmo apaixonada?
A demónio olha-me de uma maneira tal que por pouco não me arrependo do que disse.
- Como te atreves! Eu não te amo apenas gosto de ti e nada mais, acho-te digno de partilhares a minha companhia e a minha cama, só isso!
- Sentirias a minha falta se porventura tivesse partido?
A demónio morde o lábio e desvia o seu olhar.
- Sim...
- Não digas mais, eu entendi. - digo sorrindo e aproximando-me dela.
- Como assim, percebeste?
- És um poço de contradições, sabias minha diabinha? Será por isso que te adoro tanto? - digo beijando os seus lábios e afagando os seus longos cabelos negros.
- Não sei, meu humano pervertido, mas algo me diz que não é só por isso. - diz ela sorrindo e tirando a minha camisa.

quinta-feira, outubro 05, 2006

Unyard (4ª Parte)

Entro na câmara ansiando encontrar uma vez mais o espírito do feiticeiro, mas este não está lá, talvez tenha sido mesmo uma alucinação. Procuramos durante horas por uma saída ou por algo que nos possa ajudar, mas não encontramos nada de útil, apenas jóias e ouro, muito ouro, algumas armas encantadas mas que estão protegidas contra o roubo e muitos pergaminhos e livros repletos de feitiços.
- Caramba! - digo finalmente. - A Lilian iria adorar isto.
- Iria sim se ainda fosse uma feiticeira, mas ela agora é um anjo, já não faz magia. - diz Lara de costas para mim admirando as armas encantadas.
- A Lilian um anjo, hm, como gostaria de a ter visto nessa forma. - uma nuvem de pó grosso liberta-se quando fecho um livro de capa azul. - Bom, sem uma feiticeira estes livros e pergaminhos não nos irão ser úteis.
- Não há nada aqui que nos possa ser útil. - rosna Lara exasperada. - Armas encantadas que não podemos usar, magias que não sabemos controlar e ouro que nunca iremos poder gastar. Estamos aqui presos, Cav, presos!
- Calma, Lara, calma, ainda não vimos o sarcófago.
- Esse também não deve ter nada, apenas a gema que entregámos à Ursula.
- Não custa nada tentar, aliás, eu não te contei, mas quando resgatámos a gema eu vi-o.
- Viste o quê? O espírito do velho? - pergunta a demónio incrédula.
- Sim, por momentos vi-o, mas depois desapareceu. Estava a querer dizer-me algo, mas eu não percebi.
- E só agora é que mo dizes? Devias ter-me dito isso logo no início, Cav, não teríamos perdido este tempo todo.
- Como assim? Não me digas que consegues invocar e conversar com espíritos. - digo sorrindo.
- Hm, hm. - diz ela anuindo com a cabeça e aproximando-se do cadáver.
- Mas tu és um demónio e não um anjo, pensei que só os anjos tinham essa capacidade.
- Cav, os anjos e os demónios são feitos da mesma matéria, são como dois lados opostos da mesma moeda. Nós demónios fazemos o queremos, vivemos a vida de uma maneira egoísta, digamos assim, enquanto eles vivem para zelar pelo bem estar de todos, ou assim o dizem, pois no meu entender são uma cambada de orgulhosos que no fundo, no fundo querem é ser venerados. Basicamente temos os mesmos poderes, por isso é que as nossas guerras acabam sempre empatadas.
- Sim...
- Enfim, confia em mim humano, se eu te digo que sei falar com os mortos é porque o sei. Mais tarde conversaremos melhor, falar-te-ei de certas coisas sobre eles que vocês não sabem, vais ficar surpreendido e no final verás que eles não são assim tão bonzinhos como dizem ser. - a demónio pisca-me o olho e coloca a sua mão sobre o crâneo o feiticeiro começando a murmurar palavras incompreensíveis.

A sala fica gelada e um arrepio de frio percorre a minha espinha, a iluminação da câmara parece baixar consideravelmente e a sensação de um milhão de olhos a observarem-me de todos os lados invade-me. No canto da sala uma sombra começa a mexer-se, a princípio parece ser provocada pelo suave tremelicar da tocha, mas depois ganha forma e move-se na direcção da demónio.
- Quem me ousa acordar do meu sono eterno? - pergunta com uma voz sobrenatural.
A demónio morde o lábio e olha para mim antes de começar a falar.
- Uma demónio que precisa de ajuda. - diz ela num tom de voz quase imperceptível.
- Ajuda!? Um demónio? E porque haveria eu de ajudar uma criatura tão desprezível?
Noto um brilho de raiva no olhar de Lara que depressa desaparece.
- Porque os mortos-vivos que estavam presos neste vale foram libertados.
- Como? E quem foi que os libertou? Isto nunca deveria ter acontecido, nunca! Aquela bruxa não pode ficar à solta, tem de ser detida!
- Nós sabemos disso, mas precisamos de saber como é que a "matamos", se é que se pode matar algo que já está morto?
- Nós? Quem está aí contigo?
- Um humano. - diz Lara apontando na minha direcção.
Sem saber o que fazer, esboço um sorriso e cumprimento-o.
- E-eu conheço-te, t-tu devias estar morto. - diz ele numa voz trémula.
Lara e eu olhamos um para o outro.
- Mas garanto-lhe que estou bem vivo. Precisamos da sua ajuda, a gema branca foi destruída e agora não sabemos como deter esta ameaça.
- A gema... Sim, sim, temos de a impedir. Mas o preço vai ser alto de mais para mim.
- Como assim? - pergunta Lara.
A voz do velho feiticeiro torna-se fraca e cansada como se todo o peso do mundo fizesse pressão sobre ela.
- Terão de usar o diamante preto, uma jóia muito poderosa, mas que irá destruir todo este vale encantador. Quando digo tudo, digo mesmo tudo, vivos, mortos e almas.
- A Ursula e os seus esbirros afastaram-se quando o viram, parece que pressentiam o seu poder.
- Sim, ela sabe o que a pedra faz, mas desconhecia a sua presença. Aquela rameira, aquela traidora roubou-me tudo o que eu tinha de mais sagrado, por isso é que a amaldiçoei, a ela e a todos os seus seguidores. Infelizmente cresci nesta zona, este vale foi a minha casa durante longos anos, anos muito felizes, e por causa disso não fui capaz de o destruir. Mas esse era o meu destino, devia tê-lo cumprido, só os Deuses sabem quantos vivos foram corrompidos por ela...
- Como é que activamos o seu poder? - pergunta Lara pouco interessada na história do feiticeira.
- Hã? Paciência, minha filha, paciência. Eu sei que a minha história te aborrece, mas é tudo o que me resta.
- Não devemos ficar agarrados ao mundo dos vivos, feiticeiro, devemos aceitar a morte e partir.
- É fácil para ti dizê-lo, demónio, não conheces a morte nem a dor da separação de pessoas que amamos.
- Dizes tu, feiticeiro, dizes tu...
Olho para Lara intrigado, o que quererá ela dizer com aquilo?
- Mas tens razão, tudo não passa agora de memórias vãs, memórias de um espírito que já nem devia existir. Para activar a pedra terás de a colocar na mão de uma estatueta de ouro que se encontra na villa. A Ursula sempre desconheceu o propósito dessa estatueta e ainda bem, pois se soubesse o que ela faz muito certamente que já a tinha destruído.
- E como é que reconheço a estatueta?
- Simples, é uma réplica da Ursula. Irónico não acham?
- Muito. - digo sorrindo.
- E como é que saímos daqui, a entrada principal está guardada.
- Por debaixo do sarcófago existe uma passagem que irá dar directamente à villa, uma vez lá dentro procurem pela estatueta, que, tendo em conta o narcisismo da Ursula, deve estar no seu quarto.
- Obrigado. - diz Lara sorrindo.
- Uma vez activada a pedra esta ficará branca e terão apenas quinze minutos para fugir da aldeia, se não conseguirem serão totalmente destruídos.
O espírito desaparece momentos depois e seguindo as suas instruções afastamos o sarcófago e deparamo-nos com uma nova saída.

A villa parece estar desabitada, todos os cidadãos da cidade encontram-se à porta do templo esperando por nós. Não perdemos muito tempo a encontrar o quarto, este está logo ao lado daquele por onde entrámos, infelizmente, embora os seus esbirros estejam à nossa espera junto do templo, Ursula encontra-se no quarto admirando-se ao espelho.
- Ali está a estatueta. - sussurra Lara.
- Sim, mas como é que vamos passar pela feiticeira?
- Não te preocupes, eu trato disso, aquela cabra vai arrepender-se do dia em que ousou tocar-me.
Lara e eu entramos no quarto sem cerimónia, Ursula ao ver-nos lança um grito de espanto.
- Vocês? Mas como é que passaram pelos meus servos?
- Isso é uma longa história, mas se eu fosse a ti preocupava-me com o meu bem estar. - diz Lara desembainhando a espada.
Ursula sorri.
- És uma idiota se pensas que podes ferir-me com essa espada.
- Com esta espada? Não, só com ela não consigo, mas com a ajuda disto sim, aliás, com isto até te posso destruir. - a demónio sorri ao tirar de entre o seios o diamante negro.
A feiticeira solta um grito de terror ao vê-lo e recua tapando os olhos.
- Parece que o teu sorriso se desvaneceu, tu sabes bem que isto te pode matar, mas mais importante torna-te sensível aos meus golpes.
Ursula murmura um feitiço mas Lara desfere-lhe um golpe no braço descarnado quebrando a sua concentração e fazendo-a urrar de dor.
- Dói, não dói? - o olhar dourado de Lara parece deliciar-se com cada golpe e com cada grito de dor que é expelido do corpo moribundo da feiticeira. - Como te atreveste a tocar-me e a tentar matar-me? - grita a demónio deleitando-se com a tortura que inflingia na pobre mulher.
- Pára, pára, por favor pára. - implorava Ursula chorando copiosamente e encolhendo-se a um canto com as mãos protegendo o rosto, numa tentativa infrutífera de fazer parar a dor.
- Lara! - grito revoltado colocando a mão por cima do seu ombro. - Pára com isso, viemos aqui para a destruir, não para a torturar.
A demónio olha para mim, nos seus olhos dourados está estampado um brilho louco e nos seus lábios um sorriso de puro prazer.
- Ela merece, Cav, ela merece. - diz ela calmamente.
- Não, ninguém merece ser torturado, ninguém! - grito furioso arrancando-lhe das mãos o diamante.
A demónio não reage, observa-me sorrindo como se a minha fúria ainda a divertisse mais. Assim que coloco a pedra na estatueta esta torna-se branca e uma ligeira vibração faz tremer o candelabro.
- Pronto, agora é melhor fugirmos, não temos muito tempo.
- Antes de irmos há mais uma coisa que eu quero fazer. - diz a demónio olhando novamente para a Ursula. - Não a vamos deixar à solta, vamos acabar com ela.
Lara pega na feiticeira e sussurra-lhe algo ao ouvido, algo que não consigo ouvir mas que é dito com um sorriso nos lábios. Ursula geme e treme, mas antes que possa fazer algo a demónio aproxima-a da estatueta e encosta o seu rosto ao diamante. A feiticeira solta um grito pavoroso e eu sou obrigado a desviar o olhar enquanto o seu corpo é consumido por chamas brancas. Sorrindo maliciosamente Lara corre dali para fora na direcção da estalagem e dos nossos cavalos, sigo-a e minutos depois estamos fora da aldeia e do vale. Com um brilho intenso tudo é destruído e o vale outrora verde e cheio de vida torna-se agora negro e estéril.