quinta-feira, janeiro 11, 2007

O Despertar

As fumegantes canecas de chocolate quente acabadinho de fazer espalham o seu doce e sedutor aroma por todas as divisões do vasto castelo flutuante. Um fogo lento e pachorrento arde na lareira da principal sala de estar consumindo dois pesados troncos de madeira, a sua luz intermitente e dançante ilumina os impressionantes sofás de pele de veado andorino. Pelos extensos corredores uma luz pálida da tímida Lua brilha sobre o mármore azulado do pavimento e realça de uma forma assustadora as sombras das armaduras que permanecem em sentido, presas à parede, como se estivessem numa formação. O silêncio é apenas quebrado pela brisa do vento que teima em penetrar por uma das janelas semi-abertas de um destes corredores e bater suavemente num dos espanta-espíritos pendurado sobre a porta do quarto privado de Elianne.
Por detrás desta porta três velas iluminam toda a divisão revelando com a sua fraca luz peças de roupa jogadas no chão de qualquer maneira; nas paredes as sombras de dois corpos movendo-se e tornando-se num só tomam dimensões invulgares, os sons e os gemidos por eles expelidos são abafados pelo Tic-Tac constante de um antigo, mas possante, relógio de pêdulo encostado a uma das paredes.
O soar das doze badaladas mascara de certa forma o culminar do reencontro dos dois amantes, os seus corpos fundidos um no outro e os seus lábios entregues a uma dança de desejo e paixão são o espelho de que aquele momento é único e eterno.
- Como é bom que estejas de novo aqui ao pé de mim. - diz Elianne aninhando-se em meus braços e pousando a sua cabeça sobre o meu peito. - Senti tanto a tua falta, meu doce Cavaleiro.
- Mas eu não vou ficar aqui para sempre, minha guerreira misteriosa, em breve terei de partir de novo. - respondo passando a mão pelos seus cabelos encaracolados.
- Eu sei, eu sei. Sinto um peso enorme no coração por saber que em breve me irás deixar outra vez. - diz ela abraçando-me com força.
- Vem comigo, Elianne, vem comigo para Gaia.
- Eu... Eu não posso... Este lugar é a minha casa, aqui sinto-me bem, tenho o meu espaço, o meu silêncio, as minhas coisas... Eu já não pertenço ao teu mundo, faço parte de algo que já se extinguiu há muito tempo...
- Não digas isso, a tua raça desapareceu, mas tu sobreviveste por alguma razão. Está na hora de pôr o passado de lado e regressar.
- Tu não entendes, meu Cavaleiro, tu não entendes pelo que eu passei, pelo que eu tive de fazer. O meu mundo desmoronou-se à minha volta, pedra por pedra, pilar por pilar, tudo ruíu e eu, de certa forma, caí com ele.
- Eu compreendo que tenhas passado por um grande sofrimento, mas fugir não nos leva a lado nenhum, há alturas na nossa vida que temos que enfrentar o destino que os Deuses nos reservaram.
- Fugir? Mas eu nunca fugi de nada, meu guerreiro, eu enfrentei tudo o que havia para enfrentar. Eu... Tu não compreendes, nunca irias compreender...
- Explica-me então, conta-me o que aconteceu.
Elianne olha para mim e uma lágrima escorre-lhe pelo rosto.
- Não posso, não consigo... Perdoa-me. - diz ela levantando-se e vestindo um robe avermelhado.
- Elianne!
A guerreira apenas olha para mim e sai do quarto. Levanto-me de imediato vestindo as calças e abrindo a porta esperando encontrá-la ainda no corredor, mas ela havia desaparecido, apenas o som dos seus passos céleres permanece ecoando através dos corredores vazios. Lembro-me então daquilo que Beremid disse, que nestas alturas ela se refugiava na torre mais alta do castelo, a torre onde trocámos o primeiro beijo, e sem pensar duas vezes corro para lá.

A pesada porta de madeira encontra-se firmemente fechada, encosto o meu ouvido a ela e ouço alguém a soluçar e murmurar palavras.
- Elianne! - chamo em alta voz. - Abre a porta, por favor! - Lá dentro os soluços param e um silêncio enorme toma conta da sala. - Elianne, por favor, abre a porta! - repito. Os meus pedidos ficam sem resposta e da varanda nem um som se escapa.
Sem grande alternativa viro-me para as escadas e preparo-me para voltar para o quarto, mas algo me impede, uma sensação estranha, talvez, ou um pensamento maluco que me passa pela cabeça avisando-me que se me for embora poderei nunca mais a ver. Dominado por esse pressentimento volto a bater de novo à porta e a chamar pelo seu nome, o seu silêncio leva-me a bater com mais força aumentando a vontade de deitar a porta abaixo e descobrir o que se passa, inconscientemente é isso que faço e sem dar-me conta começo a bater com o ombro tentando arrombá-la. A pesada porta vai cedendo e ignorando a dor e o sangue quente que me vai escorrendo pelo braço atinjo o meu objectivo, com uma última e forte pancada ela cede totalmente e abre-se atirando-me com força para o chão gelado da varanda. Levanto-me a grande custo tentando estancar a hemorragia e olhando em volta procurando por ela, Elianne encontra-se no ponto mais afastado, rodeada por estrelas e luzes estranhas.
- Meu Cavaleiro, o que fizeste? - pergunta ela olhando para mim com o rosto encharcado.
- Uma loucura, pelos vistos. - respondo fazendo uma careta de dor e encostando-me à parede ofegante. - Desculpa-me, eu sei que este é o teu espaço, mas eu não podia ir-me embora assim. Tive um pressentimento esquisito.
- Que tipo de pressentimento?
- Que nunca mais te voltaria a ver. - cambaleio até ela.
- Estás ferido... - diz ela olhando para o meu ombro. - Deixa-me tratar disso. - Com uma simples passagem da sua mão sobre a minha ferida o sangue pára de escorrer e a pele fecha-se num ápice. - Já está!
- Elianne, vem comigo. - peço.
- Eu não posso...
- Podes sim, basta apenas confiares em mim. - respondo com um sorriso. - Eu estarei sempre contigo, sempre ao teu lado.
- Mas...
- Isto é tudo uma ilusão, Elianne, - digo descrevendo um arco com a mão. - nada disto é real, é apenas um sonho, um sonho monótono e repetido. Está na altura de viveres um novo sonho, um sonho inesquecível e excitante, recheado de novas aventuras e salpicado com pessoas novas e interessantes. Vem e sonha comigo, juntos poderemos transformar Gaia num mundo melhor, basta apenas confiares em mim.
- Eu não sei o que dizer, é tu...
- Diz apenas que sim. - interrompo estendendo-lhe a mão. - Confia...
- Eu confio! - diz ela pegando na minha mão e abraçando-me. - Confio com todas as forças do meu ser.
Com um beijo a imagem da varanda e do cenário fantástico começa a desvanecer-se até desaparecer por completo.

Abro lentamente os olhos e olho em redor procurando por um sinal de Elianne, esta encontra-se ainda adormecida sobre os membros fortes de Beremid, Diana acaricia gentilmente o meu cabelo e beija a minha testa, enquanto que Lara observa-me de longe.
- Voltaste! - diz Diana com um sorriso.
- Sim, e voltou com a Elianne. - diz o dragão com orgulho afagando o cabelo desta e observando com ternura o seu despertar.

1 comentário:

[[cleo]] disse...

Olá Cavaleiro!

Entrei e fiquei a ler-te em silêncio...

Agora saio... mas saio com um sorriso nos lábios!

Adorei o texto, escreves muitíssimo bem!

Beijinho soprado