domingo, abril 27, 2008

O Dia Seguinte (1ª Parte)

Duncan caminha de um lado para o outro dissertando sobre tácticas eficazes para eliminar rapidamente um feiticeiro ou alguém dotado de magia, mas eu nem lhe ligo, a minha atenção está totalmente concentrada no camarote principal das bancadas que rodeiam a arena. Ali encontram-se sentados, com a maior das comodidades, Evan e Lisa, nossos patronos, e atrás deles está Thernion, de pé, observando com igual atenção o treino. O meu olhar está fixo nele, estudo-o e procuro encontrar os seus pontos fortes e fracos. Depois da conversa com Sekhet ontem à noite apercebi-me que este homem de tez amarelada e doentia, de corpo magro e franzino, de cabelos negros espigados e oleosos, e de olhos avermelhados vivos e inteligentes, é muito mais perigoso e poderoso do que deixa transparecer. A sua vinda a este campo de treino não foi coincidência, pois a coincidência raramente faz parte da vida dos feiticeiros, a sua vinda tem um propósito e tem um nome, Sekhet, irmã de Jerrod.
Duncan continua a sua explicação usando um dos novos recrutas como exemplo, mas a minha atenção continua virada para aquele meio-elfo enigmático. Sekhet aparece nas bancadas momentos depois transportando uma bandeja com três copos e um jarro de cristal contendo um líquido dourado, provavelmente um refresco de limão para saciar as gargantas secas dos três espectadores. Thernion aproxima-se por trás e agarra-lhe o pulso enquanto lhe sussurra alguma coisa ao ouvido que a faz corar e esboçar um ligeiro sorriso. Compreendo nesse preciso momento a reacção de Sekhet ontem à noite, ela não se irritou comigo por causa de um amigo ou confidente, irritou-se comigo porque a queria afastar do seu amante. Ela está apaixonada por ele e isso coloca-a num perigo maior do que tinha imaginado.
- ... besta me está a ouvir!? - berra Duncan ao meu ouvido soltando diversos perdigotos e despertando-me dos meus pensamentos.
- Estou, sim senhor! - respondo rapidamente tomando uma postura de sentido absoluto.
- Ah, ainda bem, meu mandrião, por momentos pensei que o mundo da lua fosse muito mais interessante do que o meu discurso sobre técnicas de defesa e contra-ataque em combates com feiticeiros. - continua ele berrando e fixando os seus olhos cinzentos nos meus.
- Não, meu senhor! - volto a responder numa voz forte e em sentido.
- Então nesse caso vais disponibilizar-te como voluntário para demonstrares aos teus camaradas aquilo que acabaste de aprender combatendo com um feiticeiro numa luta até à morte, não vais minha menina? - diz ele sorrindo continuando a fixar-me deleitado com os seus olhos pequenos e sádicos.
Antes de ter hipótese alguma de responder ele empurra-me para a frente e ordena todos os outros que saiam da arena.
- Vais enfrentar um gladiador perito nas artes mágicas. - diz ele medindo-me de alto a baixo. - É um veterano nas arenas e receio bem que mesmo que uses as técnicas que te ensinei não irás sair vivo do confronto.
- Vejo que tem bastante confiança nas técnicas que ensina. - respondo sarcasticamente.
- Eu tenho confiança nas técnicas, não tenho é confiança no monte de dejectos que me entregaram para transformar em gladiadores competentes. - diz ele cuspindo no chão.
- Se somos maus é porque o nosso instrutor não presta. - respondo-lhe em tom de desafio.
- Humano insolente! - exclama levando a mão ao punho da sua maça. - Se não fosses propriedade de outro esborrachava-te a mioleira. Tenta apenas durar mais que dois minutos para dar um bom espectáculo aos teus ex-camaradas.
E dito isto roda sobre os calcanhares e sai da arena indo juntar-se aos meus companheiros nas bancadas. Confortavelmente sentado numa das cadeiras dá ordem para que o meu adversário entre.
- Hey! Poderei ao menos ter uma arma para o enfrentar? - peço dirigindo-me a Duncan.
- Usa os punhos!! - berra o anão irritado.
- Mestre Duncan, - apela subitamente Evan. - se o rapaz vai lutar que ao menos tenha uma arma.
- Muito bem, meu Senhor. - aquiesce o Anão furioso e vira-se para um dos guardas. - Tu aí, dá-lhe a tua espada.
O guarda obedece e atira a espada para dentro da arena no preciso momento em que entra no recinto o meu oponente. Apresso-me a ir apanhá-la, mas um relâmpago branco acerta-lhe em cheio desfazendo-a por completo. Não tenho outro remédio senão virar-me e enfrentar o meu adversário desarmado.

domingo, janeiro 20, 2008

Revelações

- Eu... Tenho uma coisa para te contar. - diz ela temerariamente colocando a bandeja com a ceia no chão e sentando-se num banquinho de madeira.
- E que coisa é essa? - pergunto esfregando os olhos e soltando um bocejo cansado. - Hm, pela tua cara parece ser coisa séria.
Sekhet desvia o seu olhar e morde o lábio inferior ao ouvir as minhas palavras.
- De certa forma é... É que... É que eu menti-te. - confessa ela a custo. - Bom, quer dizer, não foi bem mentir, foi mais, ocultar?
- E o que é que me ocultaste? - pergunto numa calma fingida trincando um pouco de pão com queijo.
- É... É difícil de explicar. Certamente acharias que sou maluca. - continua ela tentando sorrir enquanto passa nervosamente a sua mão pelo cabelo.
- Experimenta-me.
- Deves ter achado estranho a razão porque uma rapariga que tu nunca viste na vida, uma completa estranha, te escolheu como confidente e te revelou pensamentos e desejos íntimos.
- Confesso que isso me passou várias vezes pela cabeça, sim. - digo sorrindo.
- Pooois... A verdade é que... - Sekhet cala-se subitamente e olha para mim com uma expressão muito séria.
- Sim?
- Promete que não gozas comigo ou me chamas de louca!
- Porque haveria eu de...
- Promete, Cavaleiro!
- Ok, ok! Eu prometo.
- Obrigada. - diz ela suspirando de alívio e inspirando longamente logo de seguida. - Eu tenho visões.
- Visões?
- Sim.
- Do tipo: "vejo o futuro" e coisas do género?
- Duh! Claro! Que tipo de visões achavas que fossem?
- Pois, tens razão... - respondo meio embaraçado pela minha falta de perspicácia. - E o que vês nessas ditas "visões".
- É difícil de explicar. São muito confusas e aparecem em qualquer altura. Geralmente são flashes curtos e enigmáticos.
- Mas o que é que eu tenho a ver com isso?
- Não é óbvio? - diz ela sem paciência. - Apareces nelas.
- Sim, até aí já eu percebi. O que eu queria saber é o que é que te fez confiar tanto em mim.
- Bom... Erm... Não sei... - diz ela corando.
- Não sabes?
- As visões são muito confusas e rápidas. Sei que fazes parte do meu destino porque te vejo a meu lado. E não! Não é dessa maneira! Tu ajudas-me, defendes-me e cuidas de mim. Por vezes vejo-nos em combate juntos, outras vezes vejo-me nos teus braços, é como se estivesse ferida ou exausta e tu me estivesses a dar palavras de alento e de incentivo, entendes?
- Começo a entender. Continua.
- E é isso. Durante as esses vislumbres sinto-me bem ao teu lado, sinto que posso confiar em ti. - confessa ela corando de novo. - Eu sempre pensei que tudo isto fosse imaginação minha, fossem apenas sonhos e desejos de uma adolescente cativa, mas depois... Depois vi-te chegar e percebi que afinal não eram fantasias, eram sinais.
- Interessante. Falaste disto a mais alguém?
- Sim...
- A quem?
- Ao Thernion...
- Ao Thernion? Também o vês nessas tuas visões?
- Não sei, são confusas, muito confusas, percebes?
- Então porque razão lhe falaste delas?
- Bom, na verdade foi ele que veio falar comigo.
- Como assim?
- Não te sei dizer, é estranho. Foi como se ele tivesse vindo à minha procura.
- Estás a querer dizer que ele está aqui por tua causa?
- Sim... Não... Quer dizer... Oh, não sei! Eu não sei de nada, Cavaleiro! - desabafa ela abanando a cabeça. - É tudo tão estranho e confuso. Apenas sei que ele me tem ajudado muito. O Thernion percebe de magia.
- Um feiticeiro!? Isso explicaria muita coisa. - exclamo murmurando a última parte.
- O quê?
- Ouve, Sekhet, acho melhor afastares-te do Thernion, ele pode não ser boa companhia.
- Mas ele tem sido tão bom para mim, é um querido e tem-me ajudado tanto.
- Eu percebo, mas tu própria o disseste que ele veio à tua procura e além do mais é um feiticeiro, e esses tipos não são de confiança.
- Oh, mas tu estás a ser preconceituoso, lá por ser...
- Não, não estou. Conheço bem demais as manhas dos feiticeiros. Eles não são flor que se cheire. Poucos são aqueles em que se pode confiar. Se fosse a ti, eu...
- Não! Eu confio nele e tu não me podes proibir de o ver.
- Não te estou a proibir, estou apenas a...
- Olha esquece, não vale a pena! - diz ela levantando-se irritada. - Eu não te devia ter dito nada, devia ter deixado que as coisas corressem normalmente.
- Ouve, Sekhet, eu...
- Esquece, Cavaleiro, és tal e qual o meu irmão. Já sou crescida e já não preciso que me digam como viver a minha vida. Até amanhã! - dispara ela pegando no tabuleiro e saindo a correr pela porta.
- Espera...
Ora bolas, fizeste-a bonita, Cav. Hm, quem haveria de dizer a Sekhet é vidente e Thernion um feiticeiro. Se for verdade o que ela diz, que ele veio atrás dela, então receio que ela esteja metida numa alhada. Pelo sim, pelo não, é sempre bom mantermo-nos afastados dos assuntos dos feiticeiros, acabam sempre por nos arrastar para sarilhos, se não for para a própria morte. Eu ainda me lembro das minhas "aventuras", se é que lhes posso chamar isso, com a Diana. A sua curiosidade e sede de conhecimento atraíam-na para cada uma... Hm, como estará ela, bem espero eu, assim como a Lara e a Ela. Mas agora não é altura para pensar nelas, tenho que me concentrar neste assunto, tenho que descobrir mais sobre as visões de Sekhet, tenho que saber do que é que eu a estava a proteger e com quem, ou com o quê, lutava eu. Amanhã, amanhã eu tratarei disso. Terei que ter uma conversinha com esse Thernion, mas agora, agora vou é dormir porque amanhã será um longo e duro dia, tenho a certeza disso...

sexta-feira, janeiro 18, 2008

Divagações

A noite cai placidamente sobre o complexo e o céu negro enche-se pouco a pouco de estrelas brilhantes e de coloridas nuvens estelares. No entanto, apesar do colorido estelar a Lua Nova lança sobre a terra uma escuridão espessa e inquietante. Mas tudo isso pouco me importa, tudo o que anseio neste momento é chegar à minha cela e deitar-me sobre a minha cama de palha e finalmente descansar. O dia fora duro e exaustivo. Duncan colocou-nos provas bastante difíceis, exigentes e letais e, sob o seu olhar cinzento e insensível, outros três dos novos recrutas pereceram hoje manchando com o seu sangue a fina e escaldante areia dourada da arena. Já passou uma semana e com a morte destes três o número de falecidos, sob a orientação daquele desprezível anão, subiu para doze. Pergunto-me quantos mais conseguirão resistir aos seus treinos sádicos e bárbaros.
Chego finalmente ao meu destino. Todos os meus músculos clamam por descanso e repouso e como tal, como que conduzido por uma força instintiva, deixo-me cair sobre o camastralho. Fecho os olhos, mas apesar de exausto não adormeço de imediato, os meus pensamentos divagam por diversos temas ao mesmo tempo até se concentrarem num só. A Ela faz parte dele, assim como a Lara. É engraçado como duas mulheres tão diferentes, e no entanto tão iguais conseguem arrebatar o meu coração. A Ela com aqueles irresistíveis olhos verde esmeralda e com o seu indomável cabelo cor de fogo que tanto espelha a sua personalidade; e a Lara, a demónio, que com o seu espírito livre e rebelde e dona de uma sensualidade cativante me deixam sem saber como me comportar diante delas. Ai, se elas soubessem o que sinto! Apenas os Deuses sabem como reagiriam. Bom, no caso da Lara é fácil, certamente que me chamaria de humano fraco e idiota por me deixar render a tais sentimentos e logo de seguida tentaria controlar-me, tentaria fazer uso dessa minha "fraqueza" para se "apossar" inteirmente de mim e do meu livre arbítrio. Hm, os demónios são tão previsíveis... Quanto à Ela não sei como reagiria, a verdade é que tenho sido um autêntico parvo. As coisas que lhe disse, disse-as impelido pela raiva e mágoa que me consumiam. Sim, é verdade que ela me magoou e muito, mas está na altura de pôr isso atrás das costas, está na altura de recomeçar. Amo-a, sempre a amei! Mas, e a Lara, também gosto dela, também sinto falta dela, falta da sua companhia, da sua voz quente e sensual, da sua personalidade por vezes arrogante, falta da maneira como me sinto ao seu lado. Será que... que a amo também? Ai, Cav, mas em que embrulhada te meteste, e ainda por cima os demónios são incapazes de amar, ou estarei errado? A verdade é que por vezes tenho a nítida sensação de que ela tem ciúmes, mas...
- ... Entrar? - pergunta Sekhet, uma rapariguinha núbia, muito bonita, de apenas quinze anos de idade.
- Hm? Oh, sim, claro, entra, entra. - respondo sobressaltado por ter sido arrancado tão subitamente dos meus pensamentos.
Sekhet é a irmã de Jerrod, o negro que vi combater na arena. Ela trabalha como criada há cerca de dois anos, altura em que ela e o irmão chegaram, a sua função é distribuir a ceia pelos gladiadores e tentar satisfazer qualquer um dos seus caprichos. Sendo irmã de quem é ninguém lhe pede mais do que o estritamente necessário, excepto por vezes Thernion - cada vez detesto mais esse tipo - Evan e alguns dos guardas de maior estatuto. Durante a última semana, e por alguma razão que me é desconhecida, acabei por me tornar o seu confidente. Todas as noites vem ao meu quarto e desabafa-me todos os seus problemas, sonhos e fantasias. Acho-lhe piada, mas por vezes sinto que me esconde algo e para agravar as coisas, Aragoth, confirma as minhas suspeitas adiantando que ela é "especial". Esta noite o seu rosto está diferente, uma expressão grave e resoluta está espelhada no seu rosto jovem contrastando visivelmente com a sua expressão alegre, animada e despreocupada que usa no dia a dia. Algo se passa e sem saber porquê tenho um pressentimento de que aquilo que ela me escondia está prestes a ser revelado.

quinta-feira, janeiro 17, 2008

Que Comecem os Treinos

As carruagens param momentos depois em frente de um sumptuoso jardim que serve como área de lazer para os senhores do complexo e para alguns dos combatentes mais afortunados. A sua frescura, vivacidade e cor contrastam visivelmente com a paisagem árida, seca e desolada que rodeia toda a zona de treino. À nossa espera encontram-se o meu novo amo seguido de sua mulher e de uma escolta de cerca de vinte guardas bem armados e com cara de poucos amigos. Evan Lisan, um homem magro, de tez doentia e possuidor de uns olhos negros sem expressão, ordena com a sua voz fina e arrogante que nos abram a porta das jaulas e que nos coloquem em dois grupos: os novos recrutas do lado direito e os antigos do lado esquerdo. Enquanto espera que a sua ordem seja levada a cabo entretem-se a ajeitar as mangas do seu fino robe de seda dourado preso por uma leve cinta creme. A sua mulher, Lisa, pelo contrário, avalia languidamente todos os seus escravos como o seu olhar felino e sensual. O seu vestido escarlate bastante decotado realça as suas belas formas tornando-a ainda mais atraente e o seu rosto jovem, de faces rosadas, lábios bem delineados com um permanente sorriso de prazer neles marcado, os seus cabelos castanhos presos por uma fita branca formando uma longa trança, e os seus olhos grandes cor de violeta deixam qualquer homem a suspirar de desejo.
Após a divisão, o meu grupo, composto apenas por quatro indivíduos: eu, Reno, a demónio e uma outra mulher que ainda não conhecia, somos conduzidos até uma arena improvisada onde já se encontram outros novos recrutas fortemente vigiados por cerca de quinze guardas. Por entre empurrões e esgares de desprezo e desagrado somos alinhados em quatro linhas de seis enquanto que Evan e Lisa tomam os seus lugares num estrado elevado e resguardado do impiedoso Sol. Minutos depois entra no recinto um homem baixo de cabelos grisalhos com uma longa barba e bigode igualmente grisalhos mas perfeitamente arranjados e embelezados com vários anéis de ouro e prata. O seu rosto está sulcado por inúmeras e profundas rugas e o seu nariz em forma de batata fora claramente quebrado por diversas vezes ao longo da sua vida. O seu olhar cinzento é duro e estuda-nos de alto a baixo transmitindo o resultado do seu exame à sua boca fina e quase imperceptível por debaixo dos pêlos faciais. Veste uma camisa de manga curta que se encontra aberta exibindo o seu peito moreno, peludo e musculado e os seu braços curtos e fortes embelezados por magníficas tatuagens e por duas belas braçadeiras de couro. Enverga umas finas calças de pano e umas botas de pele macia. Preso à cintura encontra-se uma bela maça de armas magnificamente trabalhada e notoriamente veterana de inúmeros combates. A completar o seu inventário está um fumegante cachimbo de osso que se encontra como que colado à sua boca.
- Ora, ora, ora. - começa ele com a sua voz de barítono retirando o cachimbo da boca e soltando longos anéis de fumo. - Mas que belo grupo de meninas que eu encontro hoje diante de mim. Chamo-me Duncan "Quebra-Ossos" Lur, mas para vocês serei simplesmente Mestre! Sou o responsável pelo vosso treino! Isso quer dizer que me compete a mim transformar vocês, seus montes de esterco reles e ordinário, em campeões e em imparáveis máquinas de matar com estilo! Tal tarefa parece-me de momento impossível, mas garanto-vos que irei conseguir, nem que tenham todos de morrer durante o processo! - Duncan faz uma pausa para inalar um pouco de tabaco e para observar atentamente a nossa reacção. - Os meus treinos serão duros, extenuantes e mortais. No meu campo não há lugar para cobardes e para meninos da mamã, apenas para os valentes e destemidos que não receiam fazer qualquer coisa para sobreviver e para agradar o público. Quando terminar convosco serão o melhor grupo de gladiadores que este Mundo jamais viu, mas para isso terão de chegar vivos ao fim do dia. É que aqui os vossos Deuses não vos poderão ajudar, pois o único Deus que aqui se encontra sou eu e este, meus caros, é o meu agradável Paraíso particular e o vosso detestável e insuportável Inferno.

segunda-feira, janeiro 14, 2008

A Viagem

A viagem de regresso ao campo de treino demorou sete dias. Após os combates na arena fomos conduzidos a duas possantes jaulas ambulantes que pouco faziam para nos proteger do vento e do Sol impiedoso. Fui colocado juntamente com os restantes combatentes masculinos na primeira jaula enquanto que na segunda foram colocadas as combatentes femininas e alguns dos homens mais efeminados e/ou eunucos. Durante todo o percurso conversámos e jogámos dados para nos entretermos durante aquela fastidiosa viagem. Fiquei a conhecer melhor Ajax, descobri que é oriundo das estepes de Vendilar onde na sua aldeia exercia a profissão de ferreiro e de sacerdote de Ishtar. A sua mulher e as suas duas filhas foram assassinadas durante um ataque de um grupo de "recolectores de escravos", como ele lhes chamou, e ao que parece apenas ele e mais outros quinze homens foram capturados vivos, o resto da tribo foi brutalmente assassinada e reduzida a cinzas. Enquanto me falava do triste fim do seu povo reparei que o seu olhar tornara-se mais duro, a sua voz tremelicava um pouco e a sua possante mão cerrara-se de tal forma que se tornou branca e um ligeiro fio de sangue se lhe escapou por entre os dedos. Fiquei a conhecer também vários dos meus novos companheiros, incluindo o núbio a cujo o combate assisti, cujo nome é Jerrod e que é oriundo dos desertos de Gize; um tipo corpulento e musculado com bastante pêlo no seu enorme peito, cabelos compridos cor de palha e uma barba e bigode, bem aparados, de igual cor. Apesar de dizer pouca coisa e de o seu olhar de um azul intenso estar permanente fixo num ponto distante no horizonte fiquei a saber que o seu nome é Kull. Quanto aos meus outros companheiros apenas fixei alguns dos seus nomes, tais como Reno de Faxos, Leandro de Nimeia e um personagem intrigante que me chamou a atenção pelo seu porte altivo e nobre e pela sua clara ascendência élfica que se apresentou simplesmente como Thernion, o errante.
- Conheces alguma coisa sobre este, Thernion? - perguntei a Ajax após a breve e enigmática apresentação deste estranho gladiador.
- Não sei muito, aliás, além do seu nome não sei praticamente nada a seu respeito. - responde sem tirar os olhos do chão coberto de palha. - Sei que apareceu misteriosamente durante uma noite de Lua Nova e que apesar da sua aparência inofensiva é bastante rápido e letal.
- Como assim?
- Bom, apesar dos seus combates serem restritos, o que é algo já por si estranho, visto que nós somos pagos para entreter a multidão e não apenas um punhado de gente, como é o caso deste nosso caro colega, a verdade é que certa vez consegui assistir a um dos seus combates. - um sorriso malandro cresce no rosto de Ajax. - Foi tudo graças a uma certa escrava, sabes. Ui nunca vi uma mulher tão...
- Sim, percebo, mas vai direito ao assunto, ok?
- Pronto, pronto! Bom, como eu estava a dizer, um dia consegui assistir a um dos seus combates e o que vi deixou-me de boca aberta.
- E o que é que tu viste?
- Ali estava ele, em plena arena, apenas armado com um facalhão de, praí, quinze centímetros, sem protecção alguma a enfrentar um gigante com três vezes o seu tamanho, armado com um enorme machado e protegido dos pés à cabeça por uma cota de malha belissimamente trabalhada. E acredita que eu sei do que estou a falar, pois como ferreiro fiz muitas e sei distinguir bem a qualidade da porcaria.
- Sim...
- Pois. Ora ali estava ele sem nada no corpo e com um facalhão de quinze centímetros a lutar contra aquele gigante quando de repente, num abrir e fechar de olhos, tudo termina. O gigante cai no chão sem razão aparente e ele é declarado vencedor.
- Hm, será magia?
- Não sei, mas isso não é o mais estranho.
- Não?
- Não. O mais estranho é que o vi tratar por tu o nosso senhor. Tu sabes, aquele que nos comprou.
- Sim, e o que é que isso tem assim de tão estranho?
- És novo aqui por isso não sabes, mas o nosso senhor é um sanguinário demente, é capaz de te esventrar apenas por olhares de frente para ele. E no entanto ele trata-o por tu e não acontece nada, bem pelo contrário, o nosso senhor, e eu juro por Ishtar que é verdade, pareceu-me estremecer, como se tivesse medo dele.
- Hm...
- Aquele tipo esconde alguma coisa, ele nem dorme na nossa caserna, tem um quarto particular dentro da mansão do nosso senhor.
- Estou a ver... De facto é estranho. - olho na direcção de Thernion que, ao que parece alheio à nossa conversa, ao colidir os seus olhos com os meus me esboça um sorriso quente e sedutor.
A nossa carruagem pára subitamente dando passagem à segunda que vinha atrás de nós. Lá dentro encontram-se as combatentes femininas, mas no meio delas apenas duas me chamam a atenção. A primeira é uma mulher de pele prateada, e cabelos negros como a noite que após um maior exame me apercebo de que se trata de uma demónio, muito parecida com a Lara. A segunda é uma mulher alta de cabelos loiros muito bem tratados que estão presos num simples rabo de cavalo. O seus olhos azuis brilham intensamente como se estivessem a ser alimentados por um fogo interior. Por momentos os nossos olhares cruzam-se e ela parece estudar-me de alto a baixo desviando momentos depois o seu olhar não escondendo o seu asco e desprezo pela minha pessoa.
- Ui! - exclama Ajax. - Parece que algo em ti atraiu a atenção da amazona.
- Como assim? - pergunto espantado. - Não viste a maneira desprezível como ela olhou para mim?
- Sim, vi. - responde ele com um sorriso nos lábios. - E aí é que está, ela nunca olha para ninguém, não somos dignos do seu olhar. Somos homens, somos aquilo que as amazonas desprezam.
- Mas quem é ela?
- Não sei, apenas sei que se chama Cassandra e que a última vez que um dos homens teve a ousadia de lhe dirigir a palavra ficou sem os seus genitais e sem a língua.
- Tás a brincar!
- Não! Ela foi castigada, levou vinte chicotadas e nem uma das vezes gritou, bem pelo contrário, eu diria que adorou.
- Caramba, mas onde é que eu vim parar?
- A um lugar esquecido pelos Deuses, meu caro. - diz Ajax sorrindo.
Momentos depois entramos no complexo de treino. A nossa viagem terminara.

domingo, setembro 09, 2007

Na Arena

Mais um espectáculo sangrento tem início para gáudio das centenas de espectadores sentados nas bancadas. No centro da ampla arena encontram-se frente a frente dois bravos guerreiros peritos na arte de matar. O primeiro, um homem alto e moreno, enverga sobre uma camisa de linho branco, uma pesada couraça de bronze que lhe protege totalmente o peito; os seus braços fortes e musculados estão totalmente expostos excepto nos pulsos onde duas braçadeiras de bronze ornadas com estranhos relevos lhe garantem uma parca protecção; as suas pernas bem constituídas estão cobertas por um pequeno saiote de tiras em couro e umas caneleiras em bronze que ilustram os mesmos relevos das braçadeiras; umas sandálias de couro protegem os seus pés da areia quente e desconfortável; e o seu rosto está protegido por um capacete de bronze embelezado com um penacho vermelho que não só o protege dos golpes à cabeça, mas que também lhe reduz o campo de visão; como armamento transporta na sua mão direita uma espada curta, gladius, e na sua mão esquerda um escudo redondo em bronze. O segundo, um núbio alto e de olhar feroz, não possui qualquer protecção, excepto no seu braço esquerdo onde uma uma braçadeira de escamas em metal o cobre por completo; uma simples toga branca cobre o seu sexo e os seus pés nús mergulham insensivelmente na areia escaldante; as suas únicas armas são uma lança de um metro e meio que segura com a sua mão direita e uma resistente rede de que está firmemente agarrada ao seu punho esquerdo.
As trombetas soam e o oficial responsável pela arena faz sinal para que o combate se inicie. Os dois homens saúdam a multidão e de seguida a si mesmos antes de iniciarem a peleja. A multidão vibra e solta gritos de apoio a cada um dos combatentes enquanto estes se testam mutuamente. Subitamente um grito de júbilo percorre as bancadas e a areia dourada e escaldante é tingida de um vermelho rubro. O primeiro sangue fora derramado e o verdadeiro combate tem agora início.

- Não há dúvida, a guerra termina e as coisas regressam rapidamente ao normal. - diz um jovem observando o violento combate que se desenrola diante de si.
- É verdade. - responde um homem entroncado e careca continuando a olhar para a sua espada sem sequer levantar os olhos. - Mas por um lado até é bom, se a maldita guerra continuasse eu ficaria sem emprego. - diz ele com um ligeiro sorriso.
- És um voluntário na arena?
- Sou, assim como a maioria dos que aqui estão. - diz levantando finalmente os olhos e olhando na direcção do jovem. - O tempo dos escravos-gladiadores já passou, davam muito trabalho e as revoltas eram frequentes. Agora somos todos profissionais.
- Sim, mas ser um gladiador, mesmo que profissional é uma profissão de risco, nunca sabemos se este será o nosso último dia.
- Ninguém vive para sempre, todos morremos um dia. E no fundo o risco está sempre presente, até mesmo os agricultores, ou criadores de gado que levam vidas pacatas podem morrer de um momento para o outro. Apenas os Deuses conhecem o nosso Destino. - diz ele serenamente voltando a observar a sua espada. - Tens medo da morte?
- Não... Apenas tenho receio de desperdiçar a minha vida em vão.
- Então não te inscreveste por vontade própria?
O jovem sorri e volta a observar o combate.
- Não. Fui hoje vendido ao teu senhor com escravo-gladiador. Deixei para trás boas amigas, pessoas que me marcaram e que espero, do fundo do coração, que estejam bem.
- Ah, percebo, estás então contrariado por ter de arriscar a tua vida, não é? Não te preocupes, o meu senhor é dos bons, terás boa comida, bebida, um bom quarto e uma bela mulher, homem, ou animal (depende dos gostos) com quem disfrutar bons momentos. E dentro em breve, se tudo correr bem, irás fazer muitos amigos aqui. - diz ele levantando-se e cortando o ar com a sua possante espada. - Espero que seja esse o Destino que te reservaram os Deuses.
- O meu Destino não é ser gladiador. - responde o jovem encarando de novo o seu interlocutor. - No entanto sinto que devo permanecer convosco durante algum tempo.
- Hm, quem te ouvir falar até parece que és capaz de sair daqui pelo teu próprio pé.
O jovem esboça um sorriso e volta a observar o combate.
- Apenas quando o meu Destino estiver claro. - murmura.
Um grito ecoa pela arena e a multidão explode em delírio. O combate terminara e o núbio saíra vencedor deixando a sua quebrada lança enterrada nas entranhas do seu adversário.
- Bom, parece que agora é a minha vez. - diz o homem virando-se para o jovem e estendendo-lhe a mão. - Sou Ajax.
- Chamo-me Cavaleiro. - respondo apertando-lhe a mão. - Desejo-te boa sorte e que Bellona te proteja.
- Ishtar, a minha Deusa é Ishtar. - responde com um sorriso. - E agora, observa e aprende.
As trombetas voltam a soar e um novo combate tem início.

segunda-feira, agosto 20, 2007

Vingança (5ª Parte)

- Vês o que a tua amiga me obrigou a fazer, meu anjo? - diz Eliantha acocorada em frente do corpo calcinado de Diana e apoiada no seu bastão de prata. - Não era minha intenção matá-la, mas ela irritou-me e... Bem, aí está o resultado. Que desilusão, é um verdadeiro desperdício de energia. A tua amiga era verdadeiramente poderosa e tinha mais recursos do que eu poderia ter imaginado. Como é que ela se chamava?
- Diana. - responde Lilian sufocando as lágrimas.
- Diana... Belo nome. É o nome da Deusa da caça e da Lua. Não é de admirar que fosse tão poderosa. - diz Eliantha sorrindo e colocando a sua mão esquerda sobre a testa da feiticeira. - Vade in pace, Diana. - murmura desenhando um símbolo.
- O que estás a fazer?
- Oh, nada de mais, meu anjo. Estou apenas a tornar a sua passagem para o outro mundo ligeiramente mais fácil.
- Mas porquê?
- Por que a tua amiga foi uma adversária formidável e embora tenha sido minha inimiga merece o meu respeito. - diz Eliantha levantando-se. - Agora vamos tratar desse odioso círculo de protecção.
- Espera. Há uma coisa que eu continuo sem perceber.
- E que coisa é essa, meu anjo?
- O que tu acabaste de fazer, esse acto de altruismo para com a Diana, não o compreendo.
- E porque não?
- Porque és uma mulher egoísta e ambiciosa. És uma pessoa que não se preocupa com ninguém a não ser consigo mesma.
- É isso que pensas de mim?
- Sim.
- Então lamento desapontar-te, meu querido anjo, mas estás redondamente enganada. É verdade que sou uma mulher ambiciosa, gosto de ser a melhor em tudo o que faço, mas isso não significa que não tenha honra, ou que não respeite os meus adversários.
- Como é que podes respeitar os teus adversários, os teus inimigos, se lhes sugas tudo aquilo que eles são e que poderão vir a ser?
Ao ouvir estas palavras a atitude zombeteira de Eliantha desaparece totalmente dando lugar a uma frieza até então desconhecida.
- A conversa terminou, meu caro anjo. - diz num tom gélido e calculista.
- Parece que a verdade não é do teu agrado.
Ignorando estas últimas palavras a pérfida feiticeira coloca a sua mão esquerda sobre a bela esmeralda que jaz no topo do seu bastão e murmura um novo feitiço. Esta muda de cor tornando-se num belo e magnífico rubi cor de sangue. Por fim, e continuando a recitar incessantemente os versos obrigatórios do feitiço, Eliantha atira o seu bastão com toda a sua força na direcção do círculo de protecção. Este reage imediatamente ao objecto encantado atirado na sua direcção. A barreira mágica criada por Diana ergue-se instantaneamente cercando o bastão e incidindo sobre ele todo o seu poder destrutivo. No entanto, algo de errado acontece. A magia protectora do círculo volta-se contra si mesma destruindo uma por uma as runas estampadas a azul no chão. Sem as runas mágicas de onde possa tirar a sua força mágica, a barreira é quebrada e desfaz-se em mil e um pontos de luz azul.
- Agora passemos ao que realmente interessa. - diz Eliantha estendendo a sua mão direita e ordenando ao seu bastão que regresse.
- Não! Tu não lhe vais fazer aquilo que me fizeste, sua vampira! - grita Lilian levantando-se num salto e colocando-se entre a feiticeira e Eleanora.
- Já me começas a irritar, anjo. Desaparece da minha vista! - com um simples piscar de olhos Lilian é projectada com violência contra a parede.
Sem outra contrariedade entre ela e a elfo, Eliantha percorre calmamente a curta distância que as separa.
- Sabes, meu anjo, a sorte da tua amiga é que o novo Imperador a quer viva. - diz Eliantha arrancando a seta do estômago da elfo e curando por artes mágicas a sua ferida. - Mas isso não me irá impedir de me deleitar com alguma da sua energia vital.
- Eu disse para a deixares em paz! - grita Lilian furiosa invocando instintivamente uma violenta lufada de ar.
Eliantha é apanhada totalmente de surpresa e é projectada alguns metros para trás.
- Isto foi inesperado. - diz ela fitando confusa a furiosa Lilian. - Não devias ser capaz de lançar feitiços, minha cara, eu suguei todo o teu poder. É impossível.
- Pelos vistos não me tiraste tudo. - responde Lilian sorrindo confiante.
- Parece que não, mas isso resolve-se.
Sem esperar pela a reacção da sua adversária, Eliantha lança-lhe um feitiço de contenção prendendo todos os seus movimentos e retirando-lhe a capacidade de emitir sons.
- Agora estás indefesa, meu anjo. Como vês a tua resistência foi inútil, eu venci e não há ninguém que me possa impedir de obter o que quero. - diz com uma confiança inabalável.
- Tens a certeza disso? - diz uma voz atrás de si.
- Quem!? - espantada a feiticeira vira-se instintivamente na direcção da voz. - Tu!?
Os incrédulos olhos da feiticeira tornam-se esbugalhados assim que sente uma lâmina fria cravar-se no seu peito. As suas mãos crispadas de dor agarram-se firmemente aos braços da sua assassina no instante em que os seus joelhos trémulos cedem debaixo de si. O seu rosto perde a sua cor tornando-se lívido e retratando a triste cena de uma mulher que esteve prestes a ter tudo, mas que tudo perdeu.
- Que te sirva como última lição, feiticeira. - diz a sua assassina. - Um demónio nunca é privado da sua vingança.
A lâmina penetra mais fundo girando em torno da carne martirizada causando uma forte e fatal hemorragia. Sob o gélido olhar ambarino de Lara, Eliantha solta o seu último suspiro agarrando até ao último momento os pulsos da demónio.
- Acabou! - diz Lara cuspindo na cara do cadáver. - Vamos embora daqui.
- E quanto à Diana? - pergunta Lilian ajudando Eleanora a levantar-se.
- Vamos tirá-la daqui. - responde Lara. - Eu levo-a.
- Sabes, demónio, - diz Eleanora apoiando-se em Llian. - nunca fiquei tão contente por te ver.
- Fiz o que tinha de fazer. Ninguém insulta um demónio e sai impune.
- E para onde vamos agora?
- Para Sul, para bem longe do Imperador, Lilian. - responde a elfo. - Eu tenho um barco que está pronto a partir a qualquer hora. Podemos partir já. O que me dizes, Lara?
- Digo que não há nada que me prenda aqui e que aceito o convite, Eleanora.
- Engraçado. - diz Lilian. - É a primeira vez que vocês as duas se tratam pelo nome.
- É verdade. - diz Eleanora sorrindo. - O Destino por vezes aproxima pessoas incompatíveis.
- Talvez... - responde Lara. - Mas agora vamos é sair daqui.