Deixo a demónio ajoelhada sobre a areia escaldante e volto a entrar na adega fresca e sombria. Sorrio ao ver Lilian e Melissa decorando e estudando os feitiços daqueles livros velhos e poeirentos, suas expressões reflectem um interesse extraordinário e um júbilo estonteante ao virar de cada página. Meus olhos também se detêm um pouco no jovem Orfeu, um rapaz surpreendente que faz tudo para nos tentar agradar e para se integrar mais e mais no grupo. Como estamos unidos, parece que somos companheiros há anos incontáveis, pode parecer incrível, mas o perigo revela o nosso verdadeiro eu.
Desembainho a minha espada e começo a limpar a sua lâmina sorrindo, o meu sorriso não aparece em vão, trata-se apenas de uma máscara para esconder o que realmente estou a sentir, medo, muito medo. A Lara tem razão, de todas as pessoas que aqui estão é ela a que me conhece melhor, eu não poderei não ser capaz de derrotar Gorath, falta-me aquela força louca que me guiou na última vez que estive neste local diabólico. Eu tenho tanto medo de voltar a soltá-la, tenho tanto medo de perder para sempre a minha humanidade e tornar-me pior do que um demónio. Eu não quero voltar a ser aquela coisa, tenho nojo de mim pelo que ela fez, pelo que me obrigou a fazer... Ai, o meu coração bate acelerado dentro do meu peito, pois eu sei que esse outro eu faz parte de mim, desde pequeno que o sinto cá dentro, dormindo e esperando pela oportunidade de se revelar. A morte da Ela deu-lhe o pretexto necessário para se libertar, para se apoderar do meu corpo e dominar a minha mente e os meus movimentos.
Deixo cair a cabeça e começo a chorar. Tudo o que ele fez, o que eu fiz, ainda está gravado na minha mente, os olhos daquelas pobres criaturas enquanto eu avançava sem piedade e sem misericórdia, os seus gritos aterrorizados e os seus pedidos de clemência, tudo gira ainda à minha volta como se tivesse acabado de acontecer. Cerro os meus punhos com tanta força que as minhas unhas se cravam na minha pele fazendo ferida. Eu não quero voltar a libertar este monstro, mas a cada dia que passa é-me cada vez mais difícil mantê-lo cá dentro, sinto-o a arranhar as minhas entranhas, a rugir nos meus sonhos e a tentar soltar-se a cada momento de fraqueza. Sim, eu sei, com a sua ajuda eu seria imbatível, nada nem ninguém me venceria, mas o custo é demasiado alto e eu não estou preparado para ele.
Fecho os olhos e recordo-me de quando era criança, dos meus pais e do seu cheiro. De alguma forma sempre me senti como se não lhes pertencesse, como se não fosse filho deles, como se fosse um estranho.
- Parvoíces, parvoíces. - Digo baixinho abanando a cabeça. - Gorath e os seus esbirros dirigem-se para aqui, não é altura de estares a pensar em maluqueiras. - Levanto-me limpando os olhos e embainhando a espada. - Se é confronto que eles querem, é confronto que irão ter!
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