terça-feira, julho 25, 2006

O Passado de Lilian

As chamas devoravam a cabana sem dó nem piedade, Lilian nada podia fazer senão observar, a sua vida estava a ser consumida por aquele inferno vivo, todas as suas recordações, seus sonhos, seus risos e seus choros, seus primeiros passos na área da magia, tudo desaparecia naquela grossa e espessa coluna de fumo negro. No seu rosto sereno uma lágrima matreira teima em aparecer escorregando pela sua face, sorrio para Lilian colocando a minha mão sobre o seu ombro, tentando reconfortá-la.
- Não te preocupes, meu amor, eu estou bem. - Diz esboçando um sorriso e colocando a sua mão sobre a minha. - Afinal de contas, tudo o que vivi foi uma mentira, a mulher a quem eu pensava conhecer, a quem chamava de "avó", apenas se aproveitou de mim, usou-me e, de certa forma, violou-me. - Ao dizer esta última palavra a feiticeira afasta o seu olhar, não conseguia encarar nem a mim nem àquela casa.
- Eu entendo-te, mas quero que saibas que estarei sempre do teu lado para o que der e vier. - Afago o seu rosto enxugando aquela lágrima.
- Obrigado. - Sua mão segura a minha e comprime-a contra os seus lábios. - Eu sei que posso confiar em ti, mas por agora, será que poderia ficar uns momentos a sós?
Aquiesço e afasto-me para junto de Lara que observa toda a cena silenciosa.
- A Lilian é forte, dá-lhe tempo e ela irá recuperar de tudo isto. - Diz sorrindo e fitando a feiticeira com um brilho estranho no olhar.
- Eu sei, mas preferia que ela não tivesse passado por esta desilusão.

Partimos pouco tempo depois, deixando as chamas acabarem o seu trabalho, ao princípio cavalgamos silenciosos, receosos de dizer algo ou alguma coisa que pudesse de certa forma avivar o sofrimento, mas depois, e sem saber como começou, tudo regressa à normalidade, contamos histórias e piadas afugentando de vez aquele ambiente negro. Chegamos à noitinha a uma pequena estalagem situada na via Juliana, via que leva ao grande porto de Lucrécia, uma poderosa cidade costeira. Embora pequena o seu anfitrião sabia muito bem como receber os seus clientes, no salão de convívio um grupo de actores e de bardos faziam as delícias dos clientes, fazendo-os ora rir ora chorar, conforme a peça ou a história; da cozinha um cheirinho delicioso a salmão grelhado acompanhado de um apetitoso molho de marisco impregnava todo o edifício, abrindo imediatamente o apetite a quem decidisse pernoitar ali.
Enquanto acertava contas com o estalajadeiro, um homem gordo, com um farto bigode preto e muito sorridente, Lara e Lilian dirigiram-se para o salão guiadas por aquele cheiro simplesmente divinal. O ambiente era fantástico, festivo e muito agradável, parecia que toda aquela alegria inebriava os nosso espíritos. Devorámos com gosto todas as iguarias que colocaram à nossa frente, pratos de excepcional qualidade, dignos de um rei, no final e completamente satisfeitos, tanto eu como Lara fitamos a feiticeira.
- Lilian, há uma coisa que não me sai da cabeça, és realmente um anjo? - Pergunto-lhe enquanto bebo as últimas gotas daquele sumo de maçã.
A feiticeira cora e desvia o seu olhar, como se soubesse que fizera mal em ocultar o seu segredo.
- Sou sim. - Diz ela baixinho.
- Mas como é isso possível? Onde estão as tuas asas? - Pergunta Lara impaciente.
- É uma longa história, mas eu conto-vos. - Inspirando pesadamente a feiticeira começa a narrar a sua história. - Eu sou, ou melhor, eu fui um Serafim, um anjo guerreiro que combate as forças das trevas. Liliannasar, era como me chamava, em toda a minha espécie não havia ninguém melhor que eu, meu nome inspirava medo a todas as criaturas sombrias. - Lara deixa escapar um grito de surpresa, mas Lilian ignora-a. - O que eu mais adorava era voar, tinha tanto orgulho nas minhas longas e belas asas brancas, mas o orgulho cegou-me, cegou-me de tal forma que tudo o resta são cicatrizes. - A feiticeira olha para mim com os olhos marejados de lágrimas. - Eu... eu...
- Se quiseres parar eu entendo. - Digo ternamente.
- Não! Eu estou bem, eu consigo continuar. - Fechando os olhos inspira novamente, quando os volta a abrir parece fitar o vazio, lembrando-se. - Certo dia eu estava a voar sobre o reino de Garin, quando ouvi uma voz pedindo por socorro, segui-a e encontrei uma menina presa num acampamento, sem pensar em mais nada, apenas guiada pelo orgulho, voei na sua direcção. - As lágrimas rolavam pela sua face. - Como fui parva, meti-me na boca do lobo, vindos de não sei donde, um grupo de homens embuscou-me, tentei defender-me o melhor que pude, mas era tarde, não tinha espaço de manobra e fui derrotada. Colocaram-me numa gaiola, como se fosse um pássaro e levaram-me para terras distantes, exibindo-me como se fosse uma anormalidade; sem espaço para esticar as minhas asas elas foram definhando, perdendo a sua beleza, uma por uma, as minhas penas foram caindo até não restar nada. Numa triste manhã de Hades, o meu "tratador", arrancou-me da gaiola e prendeu-me a uma trave de madeira, usando serrote ferrugento cortou o que restava das minhas outrora belas e orgulhosas asas. Como gritei de dor, como implorei que ele parasse, mas ele nem ligou, serrou minhas asas sem piedade, ignorando meus gritos e meus lamentos. - Lilian cobriu o seu rosto com as mãos. - Depois desse dia jurei vingança, haviam-me retirado tudo o que eu mais amava, a minha liberdade e as minhas asas. Um dia enquanto me mostravam para os seus clientes como uma das atracções principais, eu decidi agir, roubei um pequeno punhal e... e matei todos os que estavam dentro do recinto, homens, mulheres e crianças, ninguém ficou vivo. No fim, apontei o punhal para o meu peito com o intuito de acabar com a minha triste vida, mas os Deuses intervieram pouparam-me, viram o meu sofrimento e deram-me uma segunda oportunidade, tornaram-me uma criança humana, mas manteram as minhas cicatrizes, e deram-me um novo lar. - Lilian parou um pouco e sorriu. - Tirin, a mulher mais bondosa que conheci, acolheu-me e ensinou-me tudo o que sabia, mas pelo caminho o medo da morte transformou-a e levou-a a fazer o que fez. - A feiticeira cala-se abruptamente, concluindo assim a sua história.
- Não sabia que tinhas passado por tanto, és uma grande mulher Lilian. - Digo enquanto acaricio o seu rosto.
- Liliannasar, a grande guerreira, mesmo sendo um demónio é uma honra estar sentanda ao teu lado. - Diz Lara. - Mas já é tarde e estou exausta, vou dormir.
Observamos Lara a subir pela escada e a retirar-se para o seu quarto.
- Bom, parece que a nossa hora chegou, é melhor irmos dormir também. - Digo enquanto me levanto.
- Espera. - Diz a feiticeira segurando a minha mão. - Tu és tão diferente dos outros homens, tão bondoso e gentil, eu adoro estar contigo e hoje... hoje não quero que me deixes. - Seu rosto ruboriza-se. - Quero passar a noite contigo, quero entregar-me a ti e conhecer finalmente o que é ser amada.
- Também eu quero passar a noite contigo e ensinar-te tudo o que sei, meu amor. - Beijo-a e pegando em sua mão conduzo-a para o meu quarto.

1 comentário:

Anónimo disse...

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